Para um otimista, é reconfortante saber que só em 0,1% das notícias publicadas durante a campanha de 2015, em Portugal, havia referências a um dos temas que está no topo do antagonismo político nos maiores países europeus: o conflito religioso, o islamismo, a desconfiança face a uma minoria..Já um pessimista olhará para outro destes números com preocupação. A campanha eleitoral, nos media, é uma espécie de "corrida de cavalos". Só 3,8% das histórias citaram cidadãos fora das máquinas eleitorais. 65,9% da informação centrou-se nos líderes partidários..Estas são algumas das conclusões da cientista política portuguesa Susana Salgado, investigadora do ICS-UL, agora publicadas no livro Campanhas Mediáticas e Populismo na Europa (Mediated Campaigns and Populism in Europe, Palgrave, 2019), o livro estuda as campanhas eleitorais mais recentes em seis países europeus, os mais afetados pela crise do Euro (Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda), e dois que tiveram eleições no mesmo período e onde o populismo estava em crescimento (Polónia e Croácia) e procura perceber de que forma este discurso se alimentou da fragilidade económica e social dos eleitores.."Comparando com os outros países incluídos no estudo, na campanha das legislativas de 2015 em Portugal houve muito menos recurso a retórica populista", conclui Susana Salgado. O título do capítulo que escreveu sobre Portugal realça, contudo, uma "negatividade intrínseca" na campanha eleitoral. Quase dois terços da opinião publicada em jornais, sites noticiosos e TV são de "tom negativo". Ou seja, controvérsia, conflito entre políticos..Isto resulta de uma tradição local, em que os artigos de opinião não são sujeitos (como nos media anglo-saxónicos) a edição por parte dos meios de comunicação. Resulta ainda de uma outra característica portuguesa: a importância principal que os media atribuem aos partidos e aos seus líderes, na campanha..Sobretudo aos seus líderes, que são a fonte principal das notícias de campanha (58,6%). A segunda fonte mais usada pelos media são os outros dirigentes partidários, candidatos a deputados (17,2%). A terceira são os "especialistas", analistas, comentadores. E só em quarto lugar surgem os cidadãos, ouvidos em 3,8% das notícias de campanha..Não foi a crise que dominou a campanha.Isto tem outro efeito. Cerca de 41% das notícias têm, também elas, um tom negativo, de controvérsia. Isto faz com que a campanha pareça ser, mais do que um momento em que os eleitores ponderam uma escolha de propostas, um "diálogo entre adversários". Segundo o estudo, o tom negativo é mais visível no jornalismo online. A televisão acrescenta outro detalhe: é mais interpretativa na forma de noticiar, explica a autora..O resultado é uma personalização evidente das notícias. Pedro Passos Coelho e António Costa foram muito mais importantes do que as suas propostas, nas notícias. "A menção simples ou a discussão de características pessoais, como competência, liderança, credibilidade e confiabilidade, moralidade e veracidade, habilidades retóricas, aparência física, posições ideológicas, carisma ou aspetos da vida pessoal dos candidatos foram encontradas em 30,1% das notícias.".Isso foi muito mais "o tema" da campanha do que aqueles que pareciam ser os mais importantes, como a própria austeridade (15,9% das notícias), ou a situação social (11,6% da cobertura noticiosa). Também a "estratégia dos partidos" e os ecos das suas divisões internas rivalizaram com a importância da crise (13,3% das notícias).."O dado mais relevante sobre Portugal foi relacionado com a cobertura das consequências da crise do Euro e das medidas de austeridade: só esteve presente em cerca de 25% da cobertura da campanha. Dado o peso destes temas no período que antecede as eleições, esperava-se que tivessem sido mais debatidos, quer pelos partidos, quer pelos jornalistas", nota Susana Salgado..Um "teste importante".Não por defeito, mas por feitio, explica Susana Salgado ao DN, as campanhas vistas pelos media são muito mais do que um exercício de curiosidade. "Na generalidade dos casos, a cobertura jornalística centrou-se sobretudo nas iniciativas dos partidos, nos conflitos interpartidários e intrapartidários e nos resultados das sondagens de opinião. Não houve uma grande aposta no debate dos temas sociais e económicos mais prementes e na cobertura das consequências da crise.".Quando em Espanha, por exemplo, o debate sobre o bipartidarismo surgiu nos media (dando espaço para as propostas de partidos recém-criados, como o Podemos ou o Ciudadanos), em Portugal, conclui Susana Salgado, "o sistema partidário manteve-se estável apesar da crise e da austeridade"..Não foi isso que aconteceu nos outros países deste estudo - onde o populismo cresceu. O PDR de Marinho Pinto, e o PNR, de extrema-direita, surgem classificados neste estudo como partidos que usaram as tradicionais estratégias populistas. Ambos falharam, é a conclusão. "Não surgiram propostas e discursos alternativos credíveis o suficiente para convencer os eleitores. Isso não significa obviamente que novos partidos (populistas ou outros) não possam surgir e evidenciar-se no futuro. Em 2015 não foi isso que aconteceu", ressalva Susana Salgado..E a eleição de 2015, em Portugal, era vista como "um teste importante ao sistema político tradicional". Era um período, como o livro sublinha, de "desilusão com as elites e os representantes políticos e também de grande incerteza económica"..Acabou por ser, também, uma campanha eleitoral onde se viveu uma "quase completa ausência de sinais de populismo na comunicação política, na cobertura mediática". Aquele otimista do início valorizará esta frase. Já o pessimista perguntará se terá sido essa a última vez.. Entrevista ."Na "época da gerigonça" e de Rui Rio, a oposição crispada diminuiu em grande medida". Susana Salgado é investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, especialista em populismo.O que leva Portugal a ter uma campanha eleitoral marcada por uma "intrínseca negatividade"?.Ao longo dos últimos anos, tive oportunidade de analisar a cobertura jornalística de várias campanhas eleitorais e de comparar Portugal com outros países, e um dos elementos que sempre se destacou em Portugal é o tom negativo e a forte prevalência de críticas, especialmente quando as eleições são mais competitivas ou os partidos têm muito em jogo. Mas o mais interessante é que, ainda que com algumas variações de campanha para campanha, esta negatividade tem sido iniciada sobretudo pelos próprios políticos e menos pelos jornalistas. Ou seja, ainda que os jornalistas possam eles próprios escrever artigos de análise e de opinião mais críticos, a maior negatividade nas campanhas resulta do próprio discurso dos candidatos (antagonismo, críticas e acusações uns aos outros) que os jornalistas se limitam a cobrir. Isto é tanto mais importante se pensarmos, por exemplo, nas implicações que pode ter, por exemplo, a nível de acordos pós-eleitorais, ou em políticas específicas para as quais é necessário um consenso alargado. Durante a "época da gerigonça", que coincidiu também com o ambiente de crise interna no PSD e com o próprio estilo de Rui Rio, a oposição crispada diminuiu em grande medida, mas será interessante ver como os partidos reagem em ano de eleições e como a chegada de novos partidos, que tentam encontrar o seu próprio espaço e eleitorado, vai afetar a comunicação política. Ao longo dos últimos anos, tive oportunidade de analisar a cobertura jornalística de várias campanhas eleitorais e de comparar Portugal com outros países, e um dos elementos que sempre se destacou em Portugal é o tom negativo e a forte prevalência de críticas, especialmente quando as eleições são mais competitivas ou os partidos têm muito em jogo. Mas o mais interessante é que, ainda que com algumas variações de campanha para campanha, esta negatividade tem sido iniciada sobretudo pelos próprios políticos e menos pelos jornalistas. Ou seja, ainda que os jornalistas possam eles próprios escrever artigos de análise e de opinião mais críticos, a maior negatividade nas campanhas resulta do próprio discurso dos candidatos (antagonismo, críticas e acusações uns aos outros) que os jornalistas se limitam a cobrir. Isto é tanto mais importante se pensarmos, por exemplo, nas implicações que pode ter, por exemplo, a nível de acordos pós-eleitorais, ou em políticas específicas para as quais é necessário um consenso alargado. Durante a "época da gerigonça", que coincidiu também com o ambiente de crise interna no PSD e com o próprio estilo de Rui Rio, a oposição crispada diminuiu em grande medida, mas será interessante ver como os partidos reagem em ano de eleições e como a chegada de novos partidos, que tentam encontrar o seu próprio espaço e eleitorado, vai afetar a comunicação política..Portugal estava, na eleição de 2015, num momento de grande incerteza. Não era claro se a austeridade iria continuar, e como. Mesmo assim, Portugal não registou uma experiência populista. Como se explica isso?.O caso português é interessante, porque ainda que estejam reunidas as condições para a emergência e sucesso de populismo, os casos de relativo sucesso têm sido efémeros e praticamente inconsequentes, a médio e longo prazo, se analisarmos o seu impacto no sistema partidário e no discurso político em geral. Tem faltado sobretudo um líder político (ou um partido político) que consiga não só ler o clima de opinião, mas também produzir um discurso que seja convincente e atrativo para um grande número de eleitores. Na campanha de 2015, não houve de facto um candidato populista que tenha tido uma expressão eleitoral considerável, mas isso não significa que nãotenha havido alguns discursos com características populistas na campanha, como o estudo demonstrou. Não é inédito que partidos, que não são populistas, optem por estratégias populistas ou discursos populistas em alguns momentos da sua vida política, seja por causa do estilo do líder, seja porque a competição é mais renhida, por exemplo. As campanhas eleitorais geralmente incentivam esse tipo de discursos..Como se articula isso com a "negatividade" das campanhas?.Os populismos estão muito relacionados com a expressão de antagonismo aliada a uma proposta de rutura com o sistema. Não é pois de estranhar que onde há candidatos populistas haja também mais negatividade nas campanhas. No caso de Portugal essa negatividade sempre existiu, faz talvez parte da cultura política. Mas se na estratégia política e de comunicação, incluindo na forma do discurso, encontramos semelhanças, os argumentos utilizados diferem consideravelmente. Os populistas têm habitualmente um posicionamento antissistema.