A ponte que liga a Europa e a Ásia sobre o Bósforo em Istambul estava iluminada com as cores nacionais de França para assinalar a solidariedade da Turquia após o horrendo atentado com um camião no Dia da Bastilha contra uma multidão que festejava em Nice. Então, de repente, militares tomaram a ponte numa tentativa de golpe, ostensivamente destinado a restabelecer a ordem secular da República edificada segundo as linhas jacobinas no século passado por Mustafa Kemal Atatürk e que foi adquirindo lentamente, durante este século, uma forma neoislâmica sob a influência de Recep Tayyip Erdogan..Soldados e tanques tomaram estações de televisão, aeroportos e pontes. A estação pública, a TRT, saiu do ar. Os jatos rugiam nos céus. Erdogan, três vezes primeiro-ministro e agora presidente, que tem o hábito de fechar jornais e emissoras dissidentes, prendendo jornalistas e calando a comunicação social, foi obrigado a dirigir-se ao país por telemóvel, através da aplicação de vídeo FaceTime, disponibilizado por um apresentador turco da CNN para informação pública..Esta mistura caótica de rétro e digital pode servir como uma metáfora para a maneira como Erdogan tem simultaneamente modernizado a Turquia e levado o país de volta a uma espécie de autoritarismo neo-otomano assumindo ele o papel de sultão contemporâneo..De temperamento tirânico e determinado a exercer um poder sem limites como presidente executivo sob uma nova Constituição de estilo francês que ele pretende para a Turquia, Erdogan já ganhou, no entanto, dez eleições consecutivas desde 2002. Ele tem uma relação invulgar com metade do povo turco e muitos dos seus apoiantes responderam na noite passada à sua chamada para tomar as ruas. O presidente e os seus adeptos estão a dar luta. Os soldados que puseram os tanques na rua mais uma vez deviam assegurar-se de que têm um grande apoio - e não apenas no exército. Uma das razões para o espetacular sucesso político de Erdogan foi o facto de tanto os liberais como os esquerdistas terem repudiado uma cultura política que vivia um golpe a cada década e terem dado o seu apoio ao Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), moderadamente islamita, quando este se levantou contra os todo-poderosos generais da Turquia. O exército tentou proibir o AKP após a sua segunda vitória nas eleições gerais em 2007, mas recuou face a um expurgo maciço do governo que colocou um em cada dez generais atrás das grades e deixou impotente o pessoal que lhes era afeto..Para conseguir isso, Erdogan contou com uma força de ataque da polícia, procuradores do Ministério Público e espiões leais a Fethullah Gülen, um reservado imã islâmico residente nos EUA. À medida que os julgamentos militares iam ficando cada vez mais barrocos com provas muito elaboradas, o AKP chegou a vias de facto com os adeptos de Gülen que, em 2013, lançaram investigações de corrupção no círculo próximo de Erdogan. A ferocidade desta guerra civil intra-islâmica tem minado as instituições turcas e trouxe o exército de volta para o círculo de poder. Mas, na visão conspiratória do governo, é o "estado paralelo" gullenista - o antigo verdugo dos generais - que está por trás desta tentativa de golpe..Há descontentamento no exército, não apenas por causa da sua perda de influência, mas também com a política turca em relação à Síria. Até há pouco tempo, o governo permitiu uma rota jihadista de voluntários e armas para a Síria, o que possibilitou ao Estado Islâmico construir uma rede de células no interior do país. No ano passado, o Estado Islâmico bombardeou alvos ligados à reacendida insurgência curda contra a qual Ancara lutou durante três décadas. Neste ano, o Estado Islâmico tem como alvo o Estado turco, o que ficou patente com o violento atentado no aeroporto internacional de Atatürk, em Istambul, no mês passado. A resposta ao Estado Islâmico do Sr. Erdogan, preocupado com a questão curda, os gulenistas e a consolidação do seu governo de um homem só, tem sido morna..Fracassada a conspiração, a Turquia irá enfrentar um novo expurgo na sua capacidade de segurança. As batalhas do AKP com o exército e, depois, com os gulenistas enfraqueceram os serviços de informação militar e policial. Este episódio irá prejudicar ainda mais o sistema imunológico de um país da Nato que tem vindo a deslizar para fora da Europa e a entrar no caos do Médio Oriente..Editor de Assuntos Internacionais do FT