História, literatura, política e governo, astronomia e fenómenos naturais, artes e geografia constroem a matéria dos milhares de secções incluídas naquela que é a maior enciclopédia chinesa. A compilação das 800 mil páginas que acomodam mais de 10 milhões de caracteres da Grande Enciclopédia Imperial, ocupou 25 anos de labor, entre 1700 e 1725. Empresa a que não foi alheio o Imperador Kangxi, o terceiro da dinastia Qing, homem que reinaria sobre a China por mais de 60 anos, consolidador das fronteiras do gigante asiático e promotor da cultura e da ciência. Kangxi teve a seu lado, por perto de duas décadas, o padre jesuíta Ferdinand Verbiest, nascido em 1623, nos territórios da Flandres. Verbiest, a sua fé católica, mas também a ciência que praticava na astronomia e matemática, partiram em 1658 de Lisboa para Oriente junto com um grupo de missionários..Dois anos após a chegada à China onde encabeçou uma missão na província de Shanxi, no norte do país, Ferdinand assumiu o cargo de diretor do Observatório de Pequim. Em 1669, após anos de duras provações fruto da perseguição aos jesuítas, Verbiest viu-se nas graças do imperador Kangxi. O europeu fora convocado para uma competição astronómica com três provas, uma delas, a de calcular as posições relativas e absolutas do sol e dos planetas numa data precisa. Kangxi procurava com a competição, confrontar os avanços da astronomia europeia face à chinesa. Os cálculos precisos de Ferdinand Verbiest garantiram-lhe a confiança do imperador, assim como a oportunidade de retificar o calendário chinês e a de publicar, em 1674, um mapa mundo (o Kunyu Quantu), planisfério que detalhou todos os territórios até então descobertos e a respetiva descrição das diferentes partes da Terra. Dois anos antes, em 1672, Ferdinand terá apresentado frente ao imperador Kangxi aquele que é tido como o primeiro veículo movido a vapor. O engenho, com não mais de 65 cm de comprimento, ter-se-á movimentado autonomamente cerca de uma hora. Para deslocar o seu brinquedo a vapor, Verbiest socorreu-se do princípio de movimento da Eolípila, artefacto desenvolvido no século II a.C. por Heron de Alexandria, geómetra grego. Em síntese, uma esfera oca, abastecida por um recipiente com água aquecida, produz vapor expelido por dois tubos curvos que originam um movimento circular..O sonho de desenvolver máquinas térmicas que exploram a pressão do vapor para gerar movimento, teria de aguardar perto de um século e de viajar até França para ver concretizado o primeiro veículo terrestre à escala real, movido com aquela fonte de energia. Para isso, contribuiu o engenho do francês Nicholas-Joseph Cugnot, nascido em 1725 em Paris, que olhou para o vapor como uma possibilidade de propulsão. Energia a vapor então utilizada na indústria mineira, embora incapaz de traduzir a ação de vaivém de um pistão em movimento rotativo e, com este, fazer girar uma roda..Após 20 anos a servir o exército, entre 1743 e 1763, o capitão Cugnot, formado em engenharia militar, iniciou ensaios com veículos movidos a vapor. Corria o ano de 1765 e a França procurava uma solução eficaz de transporte, em períodos de paz e de guerra, de artilharia de grande porte e das peças para esta produzidas em diferentes pontos do país. Étienne François de Stainville, Duque de Choiseul, Secretário de Estado e de Assuntos Externos do rei Luís XV, ambicionava uma artilharia sem o recurso a cavalos e à troada que os acompanha..Ao capitão Cugnot, que na época laborava em estudos sobre artilharia e fortificações, foi-lhe incumbida pelo Duque de Choiseul a empresa de apresentar o projeto de um veículo autónomo da força animal, substituída pela energia a vapor. Instruído na obra de 1724, Theatrum Machinarum Novum, do físico e matemático alemão Jacob Leupold, o inventor francês, estudou a fundo a evolução da engenharia mecânica. Em 1770, Nicholas-Joseph Cugnot apresentou o protótipo, numa escala reduzida, do Fardier a vapor, cuja estrutura adaptava a da tão bem conhecida carroça acionada a força equina. A impulsionar o Fardier de Nicholas encontrava-se um motor de dois pistões a acionar a roda dianteira. Engenho alimentado a vapor pressurizado, produzido numa enorme caldeira a lenha. Perante um grupo restrito de pessoas, onde se incluía o Duque de Choiseul, o engenho evoluiu trôpego e lento, mas convincente para abonar a aprovação do rei. O Fardier seria construído à escala real..Um ano volvido, um musculado Fardier prestou-se a apresentação, sustentando toda a sua glória numa estrutura em ferro de sete metros de comprimento, acima das duas toneladas de peso, três rodas, duas delas traseiras e uma dianteira que suportava a caldeira e o mecanismo de acionamento. Uma besta capaz de arrojar com quatro toneladas de artilharia, transportar até quatro operadores e avançar perto de 8 Km a cada hora. Ritmo que acompanharia a marcha do exército mesmo quando o terreno impusesse contrariedades..Na prática, perante o grupo que se prestou a assistir à demonstração, o Fardier de Cugnot arrastou o seu caminho a não mais de 3,5 Km/hora, desgovernado sobre o solo acidentado e com a caldeira a revelar um apetite insaciável por fogo, o que obrigava a paragens para reabastecimentos a cada 15 minutos. O projeto do engenho a vapor foi abandonado e a Fardier esquecida nas oficinas do Arsenal de Paris. Não obstante o insucesso, Nicholas-Joseph Cugnot receberia uma pensão anual, concedida pelo rei Luís XV, em honra do seu trabalho para o exército. Exilado em Bruxelas aquando da Revolução Francesa, em 1789, Cugnot regressaria mais tarde a Paris já sob a égide de Napoleão Bonaparte. O inventor do primeiro veículo terrestre movido a vapor morreu na capital francesa em 1804. Em 1880, o velhinho Fardier recolheu ao Conservatório Nacional de Artes e Ofícios da capital francesa onde se encontra em exposição até ao presente..À guarda desde 1880 do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios de Paris, sobre o Fardier a vapor, penderam durante décadas dúvidas a propósito do seu funcionamento. Teria, de facto, como o descreveu nas suas memórias o escritor francês Louis Petit de Bachaumont, presenciado a evolução do veículo no século XVIII? Em 2010, um grupo de estudantes do Instituto das ciências e tecnologias de Paris (Paris Tech), apresentou uma réplica do veículo a vapor de Cugnot na qual trabalhava há perto de seis anos. Duzentos e quarenta e um anos após a sua apresentação pública, a Fardier moveu-se algumas centenas de metros. Seria apresentada mais tarde no Salão Automóvel de Paris.