A sua bênção, São Vinicius de Moraes

Miúcha e Georgiana de Moraes cantaram as canções do poeta e contaram histórias suas em Óbidos
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O branco mais preto do Brasil, o Poetinha, o dos nove casamentos ou dos cinco filhos. E como se Vinicius de Moraes, poeta, músico e diplomata, não tivesse já epítetos suficientes, a cantora Miúcha, tantas vezes sua companheira de palco, sugeriu um outro: São Vinicius.

O palco era o do FOLIO - Festival Literário Internacional de Óbidos, que decorre até dia 25 naquela vila, e o concerto na noite de quinta-feira, primeiro dia de festival, era de homenagem àquele que, se fosse vivo, faria 103 anos na próxima terça-feira, dia 19.

A Miúcha, de 77 anos, cantora e grande amiga de Vinicius, juntar-se-ia a terceira filha deste, Georgiana de Moraes. Contariam histórias, rir-se-iam, e Miúcha pediria um whisky porque "é falta de educação falar de Vinicius com água". Cantariam Samba da Bênção, Eu Sei Que Vou Te Amar ou Gente Humilde. Sobre esta última, Miúcha, comovida, notaria que nasceu de um dia em que o poeta perguntou a Chico Buarque, irmão da cantora: "Chiquinho, vamo' fazer essa letra?"

São tão amigas quanto o eram Vinicius e o historiador Sérgio Buarque de Holanda, pai de Miúcha. "Quando a gente nasceu ele já lá estava", contava a cantora no camarim, com Georgiana ao lado, horas antes do espetáculo.

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A longa digressão do histórico concerto gravado no Canecão (em Botafogo, Rio de Janeiro), em 1977, com Tom Jobim, Vinicius, Toquinho e Miúcha, teve Georgiana na percussão porque a cantora convenceu Vinicius, que não a queria lá. "Muito desconfiado, achava que ia dar muita moleza para mim. Mas Miúcha o convenceu e foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida." No final, já dizia a quem encontrava, apontando para ela: "Essa fui eu que fiz."

Vão completando as histórias uma da outra, riem-se com gargalhadas sinceras, de uma história saem sempre outras três. E sem se saber bem como, a certa altura já se falava de como "Vinicius adorava cosquinha".

[citacao:Você é um grande poeta conhecido, Vinicius de Moraes, e está aqui a fazer sambinha]

"O meu violão chamava-se Vinicius. Quando ele chegava em casa, virava festa. E quando nós éramos pequenos podíamos ir para a cama mais tarde, contando que não atrapalhássemos. Então ficava todo o mundo sentado na escada, aprendendo. Ele trouxe a música como alegria, como festa, desmistificou aquele negócio meio pretensioso que têm os maestros e os poetas. Ele sempre se recusou a ter um nome diferente, as pessoas diziam: 'Você é um grande poeta conhecido, Vinicius de Moraes, e está aqui a fazer sambinha.'"

E Vinicius fazia "sambinha" e fazia "poemas" e, dizem elas, que o conheciam, não há versos que o definam tão bem como os de Samba da Bênção: "É melhor ser alegre que ser triste / Alegria é a melhor coisa que existe."

"Eu acho que ele tinha uma tristeza, mas escolhia ser alegre", conta a filha. " Tem uma coisa bonita que Bethânia fala no documentário [Vinicius] do Miguel Faria sobre ele: 'Vinicius era assim: quando ele estava alegre o mundo ficava alegre, quando ele estava triste, o mundo ficava triste.'"

[citacao:Ele tinha uma briga com a solidão]

"Ele tinha uma briga com a solidão, com a morte, com essas coisas..." Miúcha interrompe: "Não era poeta se não tivesse." E logo Georgiana de novo: "Mas nunca vi Vinicius se queixar das coisas, não era uma pessoa de se queixar, nunca."

No concerto, a certa altura ouviu-se a voz de Miúcha a entoar "Eu sei que vou te amar", , interpretando uma das mais conhecidas músicas de Vinicius, que morreu em 1980. "Mas por que é que eu vou te amar?", lançou de rompante, parando de cantar. O público ria-se. E começava a história da hipotética canonização do poeta e músico carioca.

Miúcha evocou a crónica do poeta Carlos Drummond de Andrade, à hora da morte de Vinicius, descrevendo a sua entrada no céu "de copo de whisky na mão" e "logo dando sugestões a Deus". Então, em paródia, propunha que Vinicius fosse feito santo, "São Vinicius de Moraes", porque, afinal, falta um padroeiro "à trupe da noite, às mulheres abandonadas..."

Aqui e ali, ao longo do concerto, ouvia-se um "saravá". Estávamos na vila por onde Vinicius passou durante a lua-de-mel com a sua sexta mulher, Cristina Gurjão e onde, impetuosamente mas sem sucesso, quis comprar uma casa. De Óbidos escreveu no texto Obrigado, Portugal!, de 1969: "Obrigado, Óbidos, que pareces feita no céu, tão linda e pura (...)"

No fundo do palco, o rosto de Vinicius. Ele que "era o primeiro a acordar e o último a dormir", ele que "falava todo orgulhoso que era uma diabetes adquirida" - "muitos doces e muito whisky", diz Miúcha completando Georgiana". Ele que, conta a filha, "achava que não era direito ficar com a mulher quando, como ele dizia, 'a coisa acaba'. Ele se jogava e sofria bastante com isso". "As mulheres mais..." dizia a cantora num sorriso. "Mas não era fácil para ele, ele não era um Don Juan." Finalmente, ele, Vinicius, ali a olhar para (ou por) elas.

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