Um amigo e, embora só recentemente conhecido, um rapaz do meu tempo, o embaixador Francisco Seixas da Costa tem um blogue. Há dias, a caminho da sua terra, passou por Amarante, foi atestar a uma bomba e encetou conversa com os olhos não mediterrânicos da garagista. "De onde é?" e tal, seguido de respostas em reticências, de alguém resignado a tão pouco se saber do seu país. Russa... de uma ilha... a norte do Japão... Rapaz do meu tempo, do tempo em que os atlas eram devorados com uma vontade que atestava na suspeita de talvez nunca se ir nem a Badajoz, Seixas da Costa disse-lhe: "É de Sacalina?" E a mulher derreteu-se: "Estou em Portugal há 12 anos. É a primeira pessoa que me disse o nome da minha ilha.".Porque também sou um rapaz do meu tempo, eu também diria Sacalina e, como gosto de apostar, talvez prescindisse da sugestão sobre ser do norte do Japão. A russa: "Sou duma ilha..." E eu, logo: "Sacalina!" E como gosto também de competir aproveitei para mandar ao meu amigo uma pergunta, em SMS: "De que país era capital a cidade antigamente conhecida como Santa Maria Bathurst?" Tinha uma armadilha, a Wikipédia não reconhece esse nome inteiro, só Bathurst, antigo nome da capital da Gâmbia, hoje Banjul. O nome da capital, no meu tempo liceu, incluía a ilha onde Bathurst estava (Santa Maria), nome completo que desapareceu bem antes do advento desse saber universal que é o Google. A resposta veio no quinquagésimo de segundo, afastando a hipótese de pesquisa prévia (que, aliás, não serviria de nada): "Gâmbia." Na verdade, porque ele é diplomata, escreveu em forma de dúvida delicada: "Gâmbia?".Só confirmei o que já sabia, Seixas da Costa é um trota mundos, o seu blogue chama-se Duas ou Três Coisas, um piscar de olho ao filme de Jean-Luc Godard, Duas ou Três Coisas Que Sei Dela, sendo ela, Paris, onde ele foi embaixador. Apesar de ser sobre Paris, o filme tem como protagonista Marina Vlady (olha, outra russa pelo mundo), atriz a quem o realizador cometeu a tolice de pedir em casamento no começo das filmagens. Tendo levado com o pés, Godard nunca mais falou com a sua atriz durante a rodagem, com exceção de algumas ordens ditas para o microfone de orelha, a que ela tinha de responder olhando a câmara. Um dia, Godard atirou-lhe: "Define-te numa palavra!". Marina Vlady respondeu (e está no filme): "Indiferença." O exato oposto do que define Seixas da Costa, mesmo quando para numa estação de serviço a caminho do Marão..Aquele breve diálogo quase trasmontano que culminou em Sacalina já me deu para três parágrafos, muitos comentários no tal blogue e, até, a poemas de amigos que partilham com Seixas da Costa uma mesa no bar Procópio, em Lisboa. Julgo que o desinteresse que os jornais colhem nos quiosques tem muito a ver com a indiferença com que eles passam por uma russa numa estação de serviço no caminho para o Marão. E, o que mais é, uma russa de Sacalina..Um comentador do post prestou uma homenagem: garantiu que conhece uma aventura contada por Hugo Pratt na ilha russa. Estarei talvez enganado mas Corto Maltese nunca desembarcou em Sacalina. Mas há erros que revelam boa ciência: aquelas ilhas agrestes do extremo norte, com povos exagerados como os russos, cruzando-se com civilizações que desaparecem, são cenário típico do marinheiro de perfil cortado à faca. Estou a ver Corto Maltese a gostar do concerto duma nivkh, de um povo perdido que tange os tinrin, instrumentos em que, como todos sabemos, as cordas são vibradas com a língua..A ilha Sacalina - lá vem o meu liceu, grande como Portugal, 600 mil habitantes, no extremo-nordeste da Ásia - foi disputada durante séculos pela Rússia e o Japão, e depois da II Guerra ficou soviética. Os japoneses levaram os aïnous, os russos ficaram com os nivkhs, cada um com as suas minorias, ambos povos siberianos. No ano passado, a empresa estatal Gazprom descobriu jazidas colossais de petróleo, a juntarem-se ao gás natural da ilha que já era o de maior produção na Rússia..Já decidi, no próximo Natal vou encher o depósito a uma certa estação de serviços a caminho do Marão. Se a russa não estiver lá, deduzo que acabou a ironia da venda a retalho tão longe da grande produção (de Amarante a Moscovo, 4,5 mil quilómetros, de Moscovo a Sacalina, 9 mil). Se a russa estiver, quero saber dos muitos portugueses que, ao longo de 2016, lhe falaram do nome da sua ilha. Se eu não ficar satisfeito com a curiosidade dos portugueses, sigo outra sugestão de Seixas da Costa e em Amarante compro lérias, papos d"anjo, São Gonçalos, foguetes e brisas do Tâmega, doces de tanger a língua.