O debate sobre a crise entre a Rússia e a Ucrânia parte frequentemente de premissas erradas. A primeira, que favorece Vladimir Putin, é que a expansão da NATO a seguir ao fim da União Soviética corresponde a uma ameaça à segurança nacional russa, merecedora de compreensível resposta. Por um lado, é verdade; por outro, é mentira. É verdade porque, de facto, todos os países que constituíam o Pacto de Varsóvia, excetuando a URSS, integram hoje a NATO. É verdade porque, de facto, as lideranças ocidentais se haviam comprometido verbalmente a não estender a aliança atlântica para as antigas repúblicas soviéticas a seguir à queda do Muro. Mas é falso na medida em que nada indica que o expansionismo de Vladimir Putin fosse hoje menor se esses territórios não estivessem integrados na NATO. A instabilidade regional que teria resultado de um leste europeu desunido e desligado do bloco ocidental não traria mais paz do que aquela que, até agora, se conseguiu. Antes pelo contrário..A segunda premissa que falha no debate sobre a Rússia - ainda nesta semana propagada, entre outras falsidades, por membros do parlamento português -- é que a diplomacia americana e europeia "poderiam ter feito mais" ou "agido de outra maneira" para evitar a escalada do conflito. O problema desta premissa é que ninguém a consegue concretizar. Dá vontade de pegar num megafone e perguntar aos nossos salomónicos moralistas: poderiam ter feito mais? Mais o quê? Onde? Quando? Não foram suficientes romarias a Moscovo? Os apelos à diplomacia? As tentativas repetidas de manter canais de comunicação abertos? O adiamento - tacitamente eterno - da entrada da Ucrânia na NATO? Afinal de contas, o que é que os líderes ocidentais poderiam ter feito para não serem culpabilizados pela "escalada" do conflito? Tatuar Estaline no antebraço? Deixar uma coroa de flores junto a Lenine embalsamado?.Por mais que se tentem equiparar as responsabilidades ocidentais às da Rússia, há um momento em que a equivalência se converte em desinformação. Em Portugal, passámos a semana a assistir a isso. Se há alguém que fez tudo para evitar uma guerra na Ucrânia foram os líderes europeus. Se há alguém que fez tudo na última década para manter Putin à mesa com o Ocidente foi a União Europeia. Desde uma reação pífia a um atentado químico em solo britânico, ao encolher de ombros face ao envenenamento de Navalny, passando por um arrastar do projeto de gasoduto Nord Stream 2, só agora descartado, a Europa fez tudo para manter o Kremlin feliz, alegre e contente - talvez até de mais..A nossa política externa não falhou por ter escalado o conflito - coisa que manifestamente não fez. A nossa política externa falhou por não ter antecipado que a Rússia escalaria o conflito - e por ter preferido a passividade vezes de mais desde 2014. Esse era o debate que importava ter, numa praça menos propícia ao saudosismo..O discurso em que Vladimir Putin "reconheceu a independência" das regiões separatistas não foi mais do que um discurso em que recusou reconhecer a independência da Ucrânia e o seu direito a existir como país. Ora, o revisionismo histórico, assente numa ideia de superioridade étnica, não admite relativizações. Se a ele acrescentarmos a ordem de mobilização de tropas que se seguiu, facilmente entendemos que a invasão é certa e que a guerra é provável..Nas televisões portuguesas, todavia, prolifera a negação. "Nem ocupação há", ouviu-se nesta semana, contrariamente ao que qualquer observador internacional verificou nos últimos oito anos. É o que temos. Eu, ao ouvir Putin, lembrei-me do que disse o Presidente da República na homenagem a Aristides de Sousa Mendes em outubro passado, no Panteão. "Era já genocídio, por perseguição às comunidades, antes de ser Holocausto.".Aos nossos políticos, tenho a perguntar: acham que Putin está a fazer o quê?.Colunista