"A religião é chata, gostava de não escrever mais sobre ela"
Salman Rushdie ri de forma generosa. Faz piadas, mesmo depois de uma hora parado no trânsito de Manhattan que o fez chegar 35 minutos atrasado à entrevista. Não se esperava isto do homem que viveu escondido anos, sob proteção policial, depois do aiatola Khomeini pedir a sua morte em 1989. "Isso não sou eu, é algo que me aconteceu", diz. "Gostava de me tornar visível como o escritor que sou." É por isso que sexta-feira vai ao Folio, o Festival Literário de Óbidos, falar do último livro, Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites (D. Quixote) e considerado um dos melhores livros de 2015. Escrito com leveza, depois das suas memórias, é um regresso à ficção e aos temas de sempre: mundos em rota de colisão, fé contra razão, imaginação versus ordem.
A história começa quando uma princesa dos jinn, seres fantásticos que vivem noutro mundo, se apaixona por um filósofo. Juntos, têm um número espantoso de filhos que se espalham pela Terra. Séculos mais tarde, uma grande tempestade atinge Nova Iorque e inaugura o tempo das coisas estranhas - um autor de BD vê uma das suas criações no quarto, um bebé faz apodrecer a cara de adultos corruptos, um homem levita. Segue-se uma apocalíptica guerra entre dois mundos. No livro há aparições de Donald Trump, da Al Qaeda e de um exército que lembra o Estado Islâmico.
Este livro é divertido. Foi divertido escrevê-lo?
Acabou por ser. O que acontece com qualquer livro é que existe um período de luta em que tentas perceber o que estás a fazer. Com este, por haver muitas personagens e enredos, demorou um bocadinho até sentir que tinha o controlo. Mas assim que aconteceu, sim, foi muito prazeroso de escrever.
Como foi poder voltar a usar a sua imaginação depois de anos ocupado a escrever as suas memórias?
Foi por isso que o quis fazer. Durante vários anos, tentei usar o mínimo de ficção possível... [risos] Emocionalmente, queria fazer algo absolutamente oposto. Carreguei esta história, a história da minha vida, durante muito tempo. Passá-la para papel e enviá-la para o mundo retirou-me um grande peso dos ombros. Senti-me mais leve. Olhando para trás, sinto que este livro tem essa leveza.
Pelo que se lê no livro, parece ser um fã de ficção científica. É mesmo?
Costumava ser, já não sou. Quando era adolescente, num colégio interno em Inglaterra, li quantidades gigantes de ficção científica. Toda a leitura que fazia por prazer era ficção científica. Estava interessado na invenção de mundos, universos paralelos, primeiro contacto com extraterrestres, civilizações, e tudo isso que é típico da ficção científica. Claro que nesses dias, nos anos 60, a ficção científica não tinha tomado conta do cinema. Foi muito antes da revolução que começou com "A Guerra das Estrelas". Nessa altura, os filmes de ficção científica eram uma porcaria, mas os livros eram interessantes. Achei sempre que eram um grande veículo para ideias e que, na melhor das hipóteses, podiam ser um romance de ideias. A partir de certo ponto, passei a achar que a prosa era muito pobre. (Claro que há grandes autores de ficção científica, como Arthur Clarke, Ray Bradbury, e Kurt Vonnegut.) Também senti que havia problemas com as personagens, que eram normalmente pouco espessas, particularmente as femininas, que eram género Barbarella, ou então cientistas com batas de laboratório e nada mais. Agora é diferente, porque há importantes autoras de ficção científica. Este livro é, de alguma forma, um regresso a vários inícios, tanto no interesse dos contos e folclore indianos como nesse interesse juvenil em ficção científica e fantasia. Com essas duas coisas, parece que voltei ao sitio de onde parti.
E tentou, de alguma forma, vingar alguns dos defeitos que via nessa escrita? Duas das personagens principais do seu livro são mulheres poderosas, que dominam a narrativa.
Queria fazer todas as coisas de que tinha sentido falta. Uma escrita melhor e, sim, melhores personagens femininas. Também queria perceber quais os pontos de encontro entre esta tradição oriental de fantasia, fábulas e folclore, com estas outras formas ocidentais, não naturalísticas, como surrealismo e ficção científica. Se permitires que estas duas formas se relacionem de alguma forma, o que pode acontecer? Foi assim que nasceu este livro.
Pode a fé ser um dos pontos de encontro entre essas duas tradições?
Honestamente, espero que não. Adorava poder não escrever mais sobre religião, não sou uma pessoa religiosa e acho a religião um pouco chata. Mas a razão porque acaba por aparecer é porque cá está ela, de novo, sentada no meio da sala, impondo-se. Este fenómeno do regresso da religião como um tema público é muito estranho.
Surpreende-o?
Sim. Se fores da minha idade, e te lembrares dos anos 60, ninguém falava sobre religião. Eu tinha 21 anos em 1968. Como os franceses dizem, sou um soixant-huitard. Nessa época, discutíamos sobre todos os temas, direitos civis, Vietname, mas ninguém falava sobre religião. A ideia de que a religião faria este regresso era inimaginável.
A religião é também um bom veículo para falar dos temas que sempre lhe interessaram. Há muitas referências neste livro e grande parte são religiosas.
O livro nasce de tudo aquilo que está na minha cabeça e da tentativa de dar alguma forma coerente a isso. A minha forma de entender o mundo é através da narrativa. Por natureza, não sou uma pessoa muito teórica, não sou analítico. Não tenho nenhuma teoria do romance. A minha forma de lidar com o mundo é decidir que história posso contar e, através dessa história, chegar a algum tipo de entendimento. A primeira parte de escrever este livro, que foi difícil, como disse, foi até encontrar a resposta a esta questão - onde está a história? -, porque não chegou inteira.
O que chegou primeiro?
Foi o Sr. Gerónimo [Manezes, último nome da ama de Rushdie, descendente de portugueses]. A ideia desta personagem que está separada da terra. Por algum tempo, pensei que o livro seria apenas sobre este homem e esta coisa estranha que lhe acontece. Depois, alargou-se, dei por mim a pensar: "Se calhar ele não é a única pessoa a quem coisas estranhas acontecem." Tive esta ideia do tempo das coisas estanhas e ele passou a ser a figura principal. Os jinn, por exemplo, chegaram muito tarde. Pensava que, se calhar, estas coisas estranhas aconteceriam, sem explicação, e as pessoas teriam de lidar com elas. Na minha mente, vivemos nesse tempo. Vivemos num tempo em que o mundo é muito estranho. Os eventos na vida das pessoas tornaram-se muito estranhos. O livro conta isso na versão de um conto, mas é verdadeiro, acredito que está a acontecer.
Interessa-lhe a ideia de romance como comentário à atualidade?
Um livro tem sempre origem na minha relação com o mundo. Penso nos livros como relatórios da consciência do escritor enquanto ele se move através da vida. O escritor está a mudar e o mundo à sua volta também. Em alguns momentos o escritor em mudança encontra-se com o mundo em mudança e isso transforma-se num livro. Apesar de usar ferramentas muito antigas de contos e fábulas, queria escrever algo muito contemporâneo. Uma das soluções foi garantir que estava ancorado num lugar real, na cidade de Nova Iorque.
[citacao: É tempo da humanidade sair de casa dos pais]
Parte, então, de um mundo caótico de ideias e cria alguma ordem. Essa ideia é um dos temas do livro.
É verdade. Costumava precisar de organizar tudo muito mais antes de começar a escrever. Nos meus primeiros livros, trabalhava muito na arquitetura. Agora estou mais disposto a improvisar e ver o que acontece. Estou muito mais disposto a que o ato de escrever seja um ato de descoberta. Descobrir o livro ao fazer o livro. Tem sido gradual, mais e mais a cada livro. Muitas destas histórias foram criadas pelo que foi aparecendo na página. Foi muito interessante para mim usar esta forma mais livre de criação.
Vai continuar? Está a escrever neste momento?
Estou, mas é de novo o oposto deste: muito mais estruturado e sem fantasia.
Neste processo, surpreendeu-o quando viu que estava a voltar a velhos temas como o da razão versus religião?
Sim. Tudo isso foi uma descoberta. No início, nem sabia que a discussão dos dois filósofos aconteceria. Outra coisa que aconteceu foi a personagem de Dunia. Não era suposto ela ser a personagem principal do livro. Quando começou a surgir na página, percebi que não era uma personagem pequena, alguém que podia ser confinada a um momento. Ela tomou conta do livro.
Há uma personagem que diz que, no fim, a religião vai fazer o homem fartar-se de Deus. Acha que isso vai acontecer?
As pessoas que falam em nome de Deus são muitas vezes fantasticamente antipáticas. Estragam a mensagem toda.
Acha que o homem se está a fartar de Deus?
Espero que sim, mas não sei.
Estamos a caminhar para um mundo pós-religião?
Acho que não estamos. Essa é provavelmente a parte mais fantasiosa do livro [risos]. As antigas religiões politeístas, como a grega e a romana, têm algo comum: chega um momento em que Deus se retira da vida humana. Nos mitos nórdicos, a história é diferente, mas tem o mesmo fim. Há uma batalha e no fim os deuses derrotam os inimigos, mas também são destruídos por eles. Ambas as tradições têm a ideia de que a maturidade da humanidade requer deixar para trás a dependência nos deuses. Isto faz-me pensar que a vida humana é exatamente assim. Começamos como crianças, com figuras semelhantes a deuses, os nossos pais, guias, conselheiros, punidores, e chegamos a um ponto em que não precisamos mais disso. Saímos de casa dos pais e construímos as nossas vidas. Esse seria o meu desejo para a humanidade. É tempo de o fazer: a humanidade tem de sair de casa dos pais.
Somos a pessoa de 40 ou 50 anos que ainda vive com os pais?
Sim [risos]. Devíamos decidir, enquanto espécies, sair de casa dos pais.
Porque é tão difícil?
Porque somos fodidos. Há algo errado connosco, ainda dependemos deles.
Esse caminho está mais avançado em algumas religiões do que noutras?
O cristianismo foi responsável por bastante, na sua altura. Neste momento, o perigo vem do Islão. Não há dúvidas. Não de todo o Islão, mas de uma certa mutação. Os sauditas propagaram o wahhabismo. Isso está a oprimir pessoas no mundo islâmico, primeiro, e no resto, depois. Não é algo intrinsecamente único ao Islão. Mas neste momento, sim, temos de aceitar que vem sobretudo de lá. São tempos muito perigosos. Não há forma de o negar.
Porque regressa ao tema?
É a grande questão do mundo em que vivemos. E não é garantido, de forma alguma, que a racionalidade irá ganhar. Alguém me disse que o que está a acontecer na América é um conflito entre o superego e o id. De um lado, uma pessoa séria, com experiência; do outro, este louco, o rapaz mais traquinas da escola, a partir coisas, a mentir, a gritar loucamente, a abusar das pessoas. E há uma hipótese de que ele ganhe. Isso mostra que um país inteiro pode sucumbir à irracionalidade.
[citacao:O islão radical é a grande questão do mundo. E não é garantido que a racionalidade irá ganhar]
A razão está a perder?
Não existe nenhuma garantia de que vá ganhar.
No jornalismo diz-se que vivemos numa sociedade pós-factos, as pessoas leem para reafirmar aquilo em que já acreditam. O mesmo com a ficção?
Espero que as pessoas que leem ficção sejam diferentes. Ler ficção é partir de um mundo conhecido e ir para um lugar imaginário. Mas, sim, acho que esse é o mundo em vivemos. De outra forma, um homem como Trump não poderia mentir a toda a hora. Parece que ninguém se importa se ele está a mentir ou não.
Qual é o papel de um ator de ficção com consciência social?
Acho que tem de o tentar articular. Eu não escrevo a partir de um programa. Não quero dizer: isto é o que deves pensar, isto é o que deves fazer. Não gosto de ler livros que me dizem o que pensar. Mas o que a literatura pode fazer é criar um mundo que o leitor queira habitar. E nesse mundo haverá coisas que te vão impressionar sobre a natureza humana, sobre o que está a acontecer no mundo. Esperançosamente, acabas o livro a pensar sobre coisas que nunca tinhas pensado, a sentir coisas que nunca tinhas sentido. És, de alguma forma, afetado pelo livro e olhas para o mundo de forma diferente. (Estou agora a falar mais como leitor do que escritor.) Quando te apaixonas por um livro, ele torna-se uma parte da forma como olhas o mundo. A sensibilidade do livro torna-se parte da tua sensibilidade. Vês o mundo através dessa lente. No seu melhor, é isso que a literatura pode fazer.
O exército dos jinn parece uma metáfora para o Estado Islâmico.
Há um facto muito estranho: quando comecei a escrever o livro, ninguém tinha ouvido falar do ISIS. Era apenas o nome de uma Deusa egípcia.
Quando está a escrever e começa a ouvir as notícias...
É muito assustador ver o teu livro a tornar-se realidade. Por outro lado, pensas: "Bem, não estou errado..." É terrível dizer isto, mas, de uma certa forma, é reconfortante. Sabes que não estás a fazer algo estúpido.
Sempre que se fala no seu nome, a conversa sobre extremismo islâmico segue-se. Isso é algo que o incomoda?
Estou farto. Foi o maior dano que o meu trabalho teve. Tenho esta coisa ao pescoço, um albatroz, como o Ancient Mariner [poema de Coleridge em que um marinheiro tem o castigo de carregar um pássaro ao pescoço.]. Quero dizer às pessoas: isso não sou eu, é algo que me aconteceu há mais de 25 anos. Gostava de me tornar visível como o escritor que sou e não apenas como aquele tipo. Sobre este último livro, muita gente escreve: "Oh, é muito engraçado..."
Essa foi a minha primeira questão...
Como se fosse uma surpresa que eu seja um escritor divertido. Fui sempre. Todos os meus livros têm humor. Muitas pessoas têm uma opinião de mim com base naquilo que viram nas notícias e essa é uma delas. Os efeitos [da fatwa] continuam, tenho de lutar sempre contra eles. Sim, estou completamente farto.
No livro, a humanidade melhora através do conflito e de catástrofe. Continua a ser a forma mais provável de evolução da humanidade?
Não sei. No livro, acontece esta guerra entre os jinn e os seres humanos e a forma como o inimigo é derrotado é adotando muitos dos seus métodos. As pessoas que estão a resistir aos jiin também têm de se tornar extremamente violentas. Primeiro, pensei que isso não estava certo, não era o que queria dizer. Mas depois pensei: "Não, se calhar é mesmo isso que quero dizer." Porque é isso que está a acontecer. Quero sublinhar que o livro não diz apenas que a razão é uma coisa boa. Isso é demasiado simples. Tenho um quadro do Goya no início do livro devido ao comentário que ele faz: [Lê do livro] "A fantasia abandonada pela razão produz monstros impossíveis, unida com ela, é a mãe das artes e a origem das suas maravilhas." É quando elas são separadas que as monstruosidades surgem. Ele diz algo muito mais complexo do que uma coisa ser boa e outra má. Ele diz que juntos são criativos e que separados são destrutivos.
Começa o livro com o romance entre um homem de razão e uma criatura de fantasia.
E a união dessas duas pessoas faz nascer as pessoas que são as personagens do livro. Estou a tentar dizer que a união da razão e da fantasia é o que cria o livro. É uma força criativa. E a sua separação é o que cria a guerra, o evento principal do livro. Não há apenas bom e apenas mau. E não é, também, apenas uma alegoria ao que está a acontecer nas notícias. De certa forma, esta batalha acontece dentro de todos nós. Podemos, por exemplo, apaixonarmo-nos por pessoas completamente erradas [risos]. Não ages de sempre de forma racional.
[citacao:Incomoda-me a forma como a internet atacou a verdade]
Apesar de tudo, é um livro positivo, com um final feliz. Porquê?
Porque há muito do resto. A distopia está em todo o lado, mesmo nos livros para crianças e para jovens, como os "Jogos da Fome" e tudo isso. Fui estudante de história, não literatura. Aprendi que a história é muito imprevisível, não é inevitável, pode mudar subitamente. Sobretudo agora, em que o ritmo é tão acelerado. Se estivéssemos em 1989 e te dissesse que a União Soviética não existiria no natal, não acreditarias. Então pensei: "Deixa-me acreditar que os acontecimentos atuais não têm um fim inevitável. O que mais pode acontecer?"
Acabou por escrever um fim feliz, mas não um fim de conto de fadas.
Não queria um fim infeliz, mas também não queria um fim estupidamente feliz, idiota. Queria ter um fim que fosse bom, melhor, mas ainda com problemas. Todos os meus amigos ficaram muito chateados por o livro terminar assim. Dizem: "Como o podes fazer? Não podes, tens de continuar! Tens de escrever um segundo livro." E eu respondi: "Posso."
"Vejam lá, acabei de o fazer..."
Acabei de o fazer. E fiz de propósito [Risos]. Gostei que as pessoas tivessem esse desejo de saber o que vem depois, mas não tenho a mínima ideia do que vem depois.
Esse entendimento que tem por ter estudado história, da sua profunda imprevisibilidade. Acha que as pessoas têm consciência de que a paz e crescimento das últimas décadas não estão garantidos?
As coisas têm sido duras. Houve um período económico duro e agora há todo este conflito e violência. Mas, de muitas formas, as pessoas esquecem-se de como as coisas estão muito melhores. Primeiro, não há uma guerra mundial há mais de meio século. Se comparares o que o mundo era entre 1939 e 1945, estamos muito melhor. Não é esse mundo de guerra total com enormes e perigosos adversários. A saúde das pessoas é muito melhor, vive-se muitos mais anos. Tenho lido alguns livros sobre isso. Há agora menos violência do que havia há um século. Por isso, apesar de parecer que vivemos num mundo mais violento, o facto é que é muito menos violento do que era há 50 ou 100 anos. Imaginamos o mundo a ficar pior, mas não está. Algumas coisas são muito más, mas a ideia de que é pior do que o que os nossos antepassados enfrentaram, por exemplo, contra Hitler, não é verdade. Muitos da minha geração cresceram sem ter de lutar num exército. Eu posso ter uma esperança razoável que os meus filhos não terão de o fazer.
Quem é que culpa por esse sentimento?
É demasiado fácil culpar os media. Acredito que não somos tão bem educados como éramos. As pessoas não são criadas para ter uma noção da história. Se perguntar às pessoas sobre acontecimentos de há 50 anos, muito poucas terão algum conhecimento.
Isso é facilitado pela tecnologia? Era um utilizador ativo do Twitter, mas reparei que não diz nada há mais de um mês.
Parei. Desisti. Foi como o Brad e a Angelina - de repente, acordei e já não estava apaixonado. [Risos].
Segundo as revistas, foi mais complicado do que isso...
Talvez tenha sido [Risos]. Mas quem sabe? Pensei: "Já não gosto disto." Não cancelei a conta porque se a apagar alguém irá tomar conta dela e twittar em meu nome. Mas apaguei a aplicação do meu telemóvel.
Incomoda-o a falta de hierarquia nas redes sociais? Que aquilo que diz tenha tanto valor como o que diz Justin Bieber?
Incomoda-me a forma como a internet atacou a ideia de verdade. Uma mentira e um facto têm o mesmo peso. E uma mentira, devido ao efeito de repetições, pode adquirir maior força do que a verdade. Também me preocupa a anonimidade. As pessoas são muito mais descorteses, são rudes, agressivas, hostis, sórdidas. E não seriam se estivessem no mesmo quarto com a pessoa com quem falam. Dá-nos permissão para ser muito menos civilizados.
Há o argumento de que é necessário dizer as coisas como são, evitar ser politicamente correto.
Nunca ninguém me acusou de ser politicamente correto, espero que não esteja para acontecer. Acredito que se exagera esse problema. Todos são livres para escrever aquilo que quiserem, mas, ao mesmo tempo, todos são livres de dizer aquilo que querem. Preocupa-me que existam agora todos os tipos de grupos de interesses - como esta área de estudos de género, que se tornou tão poderosa e onde as pessoas são muito combativas - que atacam tudo o que possa ser dito. Mas acho que tens de desenvolver uma armadura. A maioria dos escritores está consciente disso, de que vivemos numa era de sensibilidade extrema.
Porque acha que o problema é exagerado?
Tens de saber que existe, mas não podes deixar que te impeça de dizer aquilo que tens de dizer. Não tenho mesmo a certeza de quão grande é o problema. Tenho um part-time na NYU [Universidade de Nova Iorque], dou aulas, e há 20 anos que percorro universidades a fazer palestras. Não encontro a polícia do politicamente correto muitas vezes. A sério que não. Portanto, ainda não estou em pânico.
Escolhe Nova Iorque como espaço do seu romance, mas depois destrói a cidade completamente.
Devemos tirar alguma conclusão?
É uma coisa muito hollywoodesca de fazer, não é? Diz-se que Los Angeles destrói Nova Iorque todos os verões, num filme ou outro, e é verdade. Mas não. Mudei-me para aqui no final de 99, por isso quase 17 anos, e isto é uma forma de mostrar que me preocupo.
Mudou-se da Índia para a o Reino Unido e depois para os Estados Unidos. Como é que estas mudanças o afetaram como escritor?
Penso sobre mim como um escritor de grandes cidades. Diria que sou uma espécie de escritor metropolitano. A cidade é onde tudo colide. Todas as histórias do mundo encontram-se nas ruas de Nova Iorque.
Seria muito diferente se tivesse ficado na Índia?
Penso sobre mim como um escritor de grandes cidades. Se me perguntasse que tipo de escritor sou, diria que sou uma espécie de escritor metropolitano. Passei toda a minha vida em três grandes cidades: Bombaim, Londres e Nova Iorque. A cidade é onde tudo colide. Todas as histórias do mundo encontram-se nas ruas de Nova Iorque. Escrevo sobre a ideia da cidade em que tudo se encontra, em que todas as narrativas se cruzam.
Seria um escritor muito diferente se tivesse ficado na Índia?
Sempre me vi como um beneficiário das consequências da migração. Neste momento, as pessoas têm muitas suspeitas sobre migração, mas, na minha vida, tem-me dado o mundo. Algumas vezes, tenho inveja do outro tipo de escritor, o escritor que fica num mesmo local toda a sua vida e conhece-o muito, muito profundamente. Um escritor como William Faulkner, que viveu sempre em Oxford, Mississípi. Oxford é minúsculo, uma praça e umas poucas ruas à volta. E, no entanto, uma vida inteira de obras primas saíram deste minúsculo espaço. Se tivesse tido essa experiência, teria um corpo de trabalho muito diferente. Também já não vivemos num tempo em que esses microcosmos existam. O mundo entra-te adentro estejas onde estiveres. Quando Flaubert escreveu "Madame Bovary", podia estar numa pequena cidade da província, não fazer nenhuma referência ao mundo exterior, e profundamente, completamente, contar a história destas pessoas. "Orgulho e Preconceito" passa-se em 1812, o mesmo ano em que acontece a grande batalha contra Napoleão Bonaparte, e Jane Austen não precisa fazer referência a isso. Está no seu pequeno universo, romanticamente selado, em que jovens procuram maridos e pode explicar completamente as suas vidas sem referência qualquer ao mundo exterior.
Os seus livros são o oposto, cabe o mundo todo.
Veja o que aconteceu há dias. A Rua 23 é afetada por um estúpido qualquer com uma bomba feita com uma panela de pressão porque odeia a América por uma qualquer razão não especificada. Eu, porque tive estas experiências em várias partes do mundo, posso tentar contar histórias sobre como é que as diferentes partes do mundo se combinam. Como é que a tua vida é moldada por coisas que acontecem muito longe? O que acontece quando estes mundos se encontra? Acho que, de uma certa forma, todos os meus livros têm tentado fazê-lo. Os meus primeiros livros, Crianças da Meia noite e Vergonha, eram tentativas de entender o mundo de onde vinha. Mas desde os Versos Satânicos que tenho tentado escrever sobre este mundo em que vivemos, de mundos em colisão com outros. Este foi o tema que a vida me ofereceu.
Em Nova Iorque