Sílvia Brunheira, 45 anos, é uma enciclopédia viva da evolução do futebol feminino em Portugal. A jogadora do Fofó tem mais anos de carreira (32) do que a maioria das jogadoras da liga profissional têm de idade. Tem também mais títulos nacionais conquistados do que anos de carreira da maior parte das colegas (13, além de nove Taças de Portugal e uma Supertaça) e é mais velha do que muitos dos treinadores das 12 equipas que este ano integraram o campeonato nacional. É a mais velha jogadora de futebol em atividade em Portugal. E não vai ficar por aqui..Sílvia tem "certamente" mais minutos nas pernas (mais de 200 mil) do que euros na conta bancária. "O futebol nunca deu para viver", confessa, ela que nunca viu a modalidade como uma profissão. Por isso sempre teve um trabalho paralelo. Tirou o curso de Educação Física e ainda exerceu, mas uma proposta de um clube espanhol, em 2004, desviou-a desse caminho para não mais voltar. Atualmente é a responsável de help desk de uma empresa que dá assistência aos multibancos do País. Quando alguma avaria, é a ela que recorrem para iniciar a reparação ou destacar um técnico para o fazer. Um trabalho que já exerce há 12 anos e permite-lhe conciliar com o futebol: "Nunca tive a ilusão que dava para ser apenas jogadora.".Esteve anos e anos "sem receber absolutamente nada", outros em que "recebia ajudas de custo de 50 euros por mês", valor que subiu para 100 euros por mês quando foi campeã nacional e passou a ir à seleção nacional. Foi uma espécie de primeiro ordenado. Isto sem contrato ou com vínculo amador. Nunca teve um contrato profissional. Essa era a realidade do futebol feminino há trinta anos: "Hoje já fazemos exames médicos, mas antes só assinávamos um documento a autorizar o clube a inscrever-nos e estava feito. Eu quando comecei a jogar nem imaginava que podia receber por isso, que me podiam pagar. Confesso até que nem sabia que havia uma seleção nacional feminina. Era muito jovem e não tinha a noção, só queria mesmo era jogar à bola.".O máximo que recebeu no futebol foi 600 euros por mês quando foi jogar para Espanha com um contrato semiprofissional. Os valores pagos em Portugal ainda "envergonham a profissionalização", mas é algo que a jogadora entende no contexto dos clubes que tentam manter a modalidade "com muita paixão e meia dúzia de tostões". Sílvia gostava de poder vislumbrar um cenário onde as equipas da I Liga fossem todas profissionais. Até porque está habituada a estar nos melhores clubes e a conquistar títulos. Esteve ligada aos períodos dourados do 1.º Dezembro e do Fofó, dois históricos do futebol feminino que lutam com armas desiguais desde a chegada dos grandes ao futebol feminino. E não quer ver "o campeonato reduzido a uma luta a três", mesmo que nunca entre em campo como derrotada..A jogadora aplaude a aposta da Federação no futebol feminino e na sua profissionalização. E mesmo que ainda haja muito caminho a percorrer, atualmente já há quem viva do futebol em Portugal e isso é bom. "Desde que criaram a liga profissional, com o Sp. Braga, o Sporting e agora o Benfica, já dá para viver do futebol, mas estamos a falar de três clubes num universo de dezenas de emblemas que tem futebol feminino. É uma realidade efémera, mesmo quem tem bons contratos no contexto do futebol feminino não se compara com os balúrdios dos contratos masculinos e as jogadoras não conseguem amealhar para ter um futuro garantido. A jogadora se não tiver um curso ou algo para onde se possa virar quando a carreira acabar vai passar dificuldades", assinala..Uma das maiores dificuldades que enfrentou na carreira foi conciliar os estudos com futebol e depois o trabalho com a modalidade. "Foi desgastante", assume, mas nunca ao ponto de a fazer desistir de uma coisa ou outra. Houve tempos em que ficava com pouco tempo para estudar, mas sempre conseguiu organizar-se para acabar o curso sem chumbar nenhum ano e continuar a jogar apesar dos sacrifícios que teve de fazer. "Quando já estava a trabalhar e já jogava na seleção nacional, a minha maior dificuldade era poder ir aos estágios sem perder o meu trabalho. E o que é que eu fazia? Metia férias. Só que muitas vezes com tantos estágios esgotava os dias. Foram anos e anos sem férias por amor à seleção", contou ao DN a jogadora do Fofó, lembrando que não o fazia pelo dinheiro, embora na altura a Federação já pagasse uma verba diária às atletas enquanto estavam aos serviço da seleção (tem 61 internacionalizações)..Começou no futebol de 11 no Sporting.Sílvia nasceu em abril de 1975, num Portugal livre, mas a adaptar-se ao pós-revolução. A infância foi "agarrada a uma bola". Na praia com o pai e o irmão, ou nas ruas da Amadora com os amigos num campo atrás do prédio onde vivia ou na escola com os colegas. "Sempre que havia uma bola eu jogava", recorda Sílvia, que aos 13 anos foi desafiada por uma colega para jogar futebol de salão em Idanha..Os primeiros passos como federada foram dados em 1988 num pavilhão e sem chuteiras. Foi aí que percebeu que a exigência era maior do que jogar na escola ou na rua. Deu-lhe "um grande gozo" porque conheceu "outras raparigas que também jogavam e não era a única". Do futebol de salão passou para o futsal e só aos 19 anos entrou em cena o futebol de onze. E logo num grande do futebol português: o Sporting, na época 1994-95. "Foi espetacular. Era um estatuto diferente. Só entrar numa instituição daquelas já causava um friozinho. A qualquer sítio onde fossemos jogar toda a gente queria ver a equipa do Sporting..Aparecíamos no jornal. Tínhamos equipamento de treino, que para mim era uma novidade. No futsal treinava com equipamentos meus e ali tinha uma realidade diferente", confessa a atleta..Passar dos ténis do futsal para as chuteiras foi "complicado" e resultou em "algumas feridas nos pés". Isto apesar de o clube leonino até ter um relvado, coisa "muito rara" na altura. "Os campos eram quase todos pelados, de terra batida, marcados com cal que nos deixava as pernas em carne viva. E quando chovia era lama por todo o lado. No Sporting tínhamos um relvado e pelo menos de uma em uma semana jogávamos no fofinho.".Hoje há sintéticos, balneários próprios e equipamentos adequados. "Um luxo" que ela nem sempre teve: "Agora dá gozo jogar à bola". Por isso quando ouve alguma colega queixar-se de algo lembra-lhe a realidade "do antigamente". Um tempo em que jogava com um equipamento de homem, que ficava demasiado largo no corpo, desconfortável e que atrapalhava o desempenho, além de não favorecer a silhueta. "Não era uma preocupação dos clubes pedir equipamentos para mulher, era mais barato encomendar a granel e em tamanho standard, que eram as medidas dos rapazes. Era ridículo", explicou Sílvia, que chegou a pedir equipamentos de criança..Foi de leão ao peito que experimentou todas as posições, à exceção de central e defesa esquerdo. Como corria muito e marcava muitos golos nos treinos colocaram-na a jogar no ataque. Marcou alguns golos, mas aguerrida como é, foi na posição de médio defensivo que se destacou no futebol feminino. Foi aliás com a camisola número 6 que jogou na seleção, mas atualmente joga a médio ofensivo no Fofó..As mordomias leoninas duraram pouco. Foi leoa apenas por um ano. Depois Santana Lopes decidiu acabar com a equipa e ela foi para o 1.º Dezembro, onde viveu "essa experiência única de jogar na Champions". Na altura o xadrez feminino do Boavista reinava, mas não demorou muito até a equipa de Sintra dominar o futebol feminino com 11 títulos nacionais seguidos. Mais tarde ajudaria a fazer história no clube da zona de Benfica..Carreira, lesões e covid-19.Tem sido "uma carreira bonita", apesar dos dois objetivos que dificilmente já serão concretizados: Passar à fase de grupos da Champions e marcar um golo pela seleção. Isto além de lamentar que Carla Couto e a Edite Fernandes (ainda joga com ela no Fofó) não tenham 20 anos para poderem desfrutar do futebol moderno e profissional de hoje..Sílvia ficou conhecida por jogar de cabelo solto. E isso deu azo a muito falatório. Certo dia as amigas foram ver um jogo da seleção no Mundialito, no Algarve, e levaram um cartaz com a seguinte mensagem: "Sílvia amarra o cabelo." Cartaz esse que acabou no balneário da equipa nacional, com as internacionais portuguesas a partilhar da ideia das amigas..Conheceu "gente espetacular", fartou-se de viajar e só tem a "agradecer uma carreira tão longa". E que ainda não vai acabar: "Sem condição física não há paixão pelo futebol que aguente uma jogadora em atividade até aos 45 anos. Se não conseguir aguentar 90 minutos em campo não dá, mas eu tenho mantido uma boa condição física. Já sinto algumas dificuldades e a recuperação é mais longa, mas procuro proteger-me e descansar bastante. O que me motiva é adorar jogar futebol e ser feliz. Ainda vibro com o jogo e sinto-me viva em campo." Mas Sílvia não é perfeita e também se aborrece: "Há treinos que já me custam. Para mim aquilo já não é novo e ter de ir treinar à noite depois de um dia de trabalho custa, mas ainda vou... e depois o jogo ao domingo compensa.".Este ano o campeonato acabou abruptamente devido à pandemia, mas nem o covid-19 fez soar a campainha da reforma. Quem já passou por duas lesões graves no joelho como ela não se assusta facilmente. A primeira lesão grave aconteceu aos 35 anos e afastou-a por oito meses. Recuperou e ainda foi campeã. A outra foi aos 38, que a levou a pensar que tinha acabado para o futebol. Recuperou, continuou a jogar e ainda foi campeã nacional. "Por isso este vírus foi simplesmente uma paragem para descansar. O clube [Fofó] já falou comigo e eu continuo disponível", revelou ao DN..O próximo campeonato será num formato diferente. Às 12 equipas da I Liga vão juntar-se mais oito numa prova com duas séries de dez clubes. O modelo não assusta a experiente jogadora, pois quando começou o campeonato também era por zonas. Agora, ao fim de 32 anos de carreira, tem alturas em que se sente cansada e sem paciência para algumas coisas, como o discurso de que o futebol entre mulheres "é enfadonho". Para a jogadora do Fofó, "nada se compara à beleza de um jogo de futebol feminino bem jogado".