A psicóloga anormal e o colunista leviano
Uma psicóloga dá uma entrevista, enquanto psicóloga e presidente da associação dos psicólogos católicos, a uma revista católica. Depois de afirmar que "hoje, nas escolas, falo com miúdos de 16 ou 17 anos que não tiveram uma namorada e a primeira ideia que têm é: "Será que eu sou homossexual ou bissexual?" Já não lhes passa pela cabeça serem heterossexuais", é perguntada sobre "como acolher os homossexuais". E responde: "Para aceitar o filho não é preciso aceitar a homossexualidade. Eu aceito o meu filho, amo-o se calhar até mais, porque sei que ele vive de uma forma que eu sei que não é natural e que o faz sofrer. É como ter um filho toxicodependente, não vou dizer que é bom."
As declarações da psicóloga suscitam indignação. No seu Facebook, a 12 de novembro, a psicóloga queixa-se de receber insultos e tenta explicar-se: "Dizem que comparei a homossexualidade à toxicodependência. (...) Leram o texto original? O que disse é que perante um filho que tem um comportamento com o qual os pais não concordam, devem na mesma acolhê-lo e amá-lo. A toxicodependência é apenas exemplo de comportamento que por vezes leva os pais a rejeitar o filho. Não é uma comparação sobre a homossexualidade mas sobre a atitude diante dela."
No dia seguinte, é tornado público um comunicado da Ordem dos Psicólogos Portugueses no qual esta diz não se rever nas declarações daquela sua associada. Recusa-lhes "qualquer tipo de base científica" e considera que "apenas contrariam a defesa dos direitos humanos, da evolução e equilíbrio social, e dificultam a afirmação dos psicólogos na sociedade", anunciando um procedimento contra a autora: "Por considerar de extrema gravidade as declarações proferidas pela Drª Maria José Vilaça, a Direcção da OPP (...) irá participar os factos em causa ao Conselho Jurisdicional (CJ) da OPP, que é um órgão estatutário, independente, isento e imparcial (...) que tem como competência zelar pelo cumprimento da Lei, do Estatuto e dos regulamentos internos, quer por parte dos órgãos, quer por parte de todos os seus membros."
Ontem, no Público, em reação a este comunicado, João Miguel Tavares pergunta, escandalizado: "Pode um psicólogo ser católico?" Frisando achar as declarações da psicóloga "de extrema infelicidade", o articulista crê no entanto que o comunicado da OPP foi longe de mais: "As pessoas deixam de se limitar a criticar Maria José Vilaça por ter dito uma tontice, e a rebater a sua opinião com argumentos sustentados, e passam a defender que ela deve ser silenciada e proibida de exercer a sua profissão porque, pelos vistos, hoje em dia não se pode ser psicólogo e ao mesmo tempo considerar a homossexualidade uma prática "não natural"". E prossegue: "É que se não se pode, como a Ordem dos Psicólogos parece defender, se passou a ser uma coisa tão inadmissível como a prática da lobotomia para curar doenças mentais, então há aqui uma notícia muito maior do que as declarações de Maria José Vilaça, e que está tristemente a passar ao lado da comunicação social. A primeira frase de todos artigos sobre este tema deveria ser esta: "A Ordem dos Psicólogos Portugueses defende que um católico que aceite os ensinamentos da Igreja em relação à homossexualidade não tem condições para ser psicólogo e deve abandonar de imediato a sua profissão.""
E testemunhas de Jeová, xiitas ou evangélicos?
A questão colocada por João Miguel Tavares é interessante, e é-o de várias perspetivas. Uma delas é, naturalmente, a da relação entre religião, práticas clínicas e ciência em geral. Por exemplo, um médico pode ser testemunha de Jeová? As testemunhas de Jeová, é sabido, são contra as transfusões de sangue. Chega uma pessoa às urgências a esvair-se e tem o azar de lhe calhar como médico um testemunha de Jeová. Até pode dar com equipa inteira testemunha de Jeová, por que não. Exemplo ridículo? Vamos a outro. Uma mulher tem um acidente e vai parar a um hospital onde só estão médicos e enfermeiros homens, todos muçulmanos xiitas do ramo que proíbe os homens de tocar em mulheres desconhecidas. Também é um exemplo estúpido? Outro: uma mulher tem um aborto espontâneo e vai parar às mãos de um médico fundamentalista católico, que, convicto de que se tratou de aborto voluntário, resolve fazer-lhe uma raspagem a frio, para a castigar. A mulher morre. É impensável? É que sucedeu mesmo. Em Portugal, nos anos 60. E muitos outros casos assim, testemunhados pelo obstetra Albino Aroso, que afirmou ter assistido a autênticos crimes contra as mulheres no início da sua prática clínica - motivo pelo qual, sendo católico, fez da sua vida uma cruzada pelos direitos reprodutivos delas.
Suponho que JMT dirá, em relação a todos estes exemplos que, caramba, há leis para impedir que se ponha em perigo a integridade física e a vida de pessoas. Que é negligência médica, e homicídio negligente, recusar uma transfusão, ou qualquer tratamento, a um paciente que pode morrer sem eles; que o médico que matou aquela portuguesa nos anos 60 seria hoje acusado de homicídio e, provavelmente, de tortura.
Saíamos do domínio dos crimes e dos cuidados de saúde: devemos permitir a um professor evangélico que recuse ensinar a teoria do Big Bang, dizendo aos alunos que o mundo foi criado por uma entidade divina em seis dias? Estou convicta de que JMT, malgrado proclamar-se cavaleiro andante da liberdade expressão e opinião, não veria escândalo em que este professor fosse sujeito a um processo disciplinar.
A defesa desmiolada da "liberdade de expressão"
JMT acha, no entanto, que uma psicóloga afirmar que a homossexualidade é uma doença (sim, é isso que ela diz) e "não é natural" é diferente das situações descritas. Ora há, desde os anos oitenta do século passado, um consenso científico sólido sobre a homossexualidade não ser uma doença, e Maria José Vilaça contradi-lo. Com argumentos científicos, "sustentados"? Não, o próprio JMT admite que ela o faz por motivos religiosos.
Sendo razoavelmente óbvio que não dá para usar argumentos religiosos na prática clínica, JMT trata o dito de Vilaça como mera "opinião". Como se um professor evangélico desse uma entrevista a dizer que acha a teoria da evolução, de Darwin, uma completa treta, e o Big Bang uma coisa ridícula e que nunca jamais isso devia fazer parte do programa escolar, mas à partida, e sem qualquer escrutínio, se partisse do princípio de que nas aulas dá a matéria sem um comentário.
Ora isso é capaz de ser um bocado parvo. E leviano, e preguiçoso. Porque basta um pouco de pesquisa no Google para descobrir que, apesar de tentar negá-lo no seu post no FB - já não é pecado mentir? - Vilaça defende que a homossexualidade é uma doença. E, mais, que pode ser curada e que tenta curá-la. Disse-o com todas as letras numa entrevista em 2008: "Entendo que é uma doença. (...) Toda a sexualidade que não é vivida na diferença entre o homem e a mulher não é completa." Questionada sobre se já "curou" homossexuais, responde: "O tratamento é possível, não quer dizer que se faça sem sofrimento. (...) Conheço casos concretos que me passam pelas mãos."
A defesa desmiolada da "liberdade de expressão" tem destas coisas. Quando diz, em defesa de Vilaça, que "a linha entre o confronto de ideias e o silenciamento de ideias está a ser ultrapassada vezes sem fim, criando uma pressão insustentável sobre quem pensa diferente de nós", pelos vistos não ocorreu a JMT que talvez a pressão insustentável e ilegítima não esteja onde a vê. Porque o que está em causa é uma psicóloga a tentar, usando a sua pretensa autoridade científica e o ascendente na relação terapeuta/paciente, impor a sua opinião sobre homossexualidade, sem ter sequer a honestidade de assumir que a afirma contra o consenso científico. O que vemos é uma psicóloga a falar aos pais, dizendo-lhes que os filhos homossexuais têm comportamentos ou ideias "não naturais", estão "doentes" e devem ser "tratados". Aquilo a que assistimos é a uma psicóloga a angariar clientes e a encorajar famílias católicas a tratar miúdos como aberrações. Onde andará a preocupação de JMT com o bem-estar e a liberdade dessas crianças e adolescentes?
Chamar vítimas aos carrascos
Em lado nenhum: o que interessa a JMT, num procedimento típico da era pós-facto, é apresentar Vilaça e os católicos em geral como vítimas de perseguição e silenciamento, invertendo completamente as posições e desprezando e elidindo as verdadeiras vítimas. Como se a história não testemunhasse de séculos de perseguição dos homossexuais. Como se não tivéssemos ainda este ano sabido que o Reino Unido legislou no sentido de conceder, finalmente, um indulto póstumo a todas as pessoas condenadas por homossexualidade. A lei tem o nome de Alan Turing, um herói da segunda guerra mundial que conseguiu quebrar o código secreto dos alemães, salvando milhares, senão milhões, de vidas, mas foi condenado devido à sua orientação sexual, expulso do serviço público, submetido a castração química e reduzido à miséria e ao opróbrio, tendo-se suicidado em 1954. Como se não houvesse ainda países, e não assim tão poucos (mais de 70), em que a homossexualidade é crime e 10 onde a pena prevista é a morte; como se essa criminalização da homossexualidade não estivesse, sempre, ligada a ditames religiosos.
É aliás curioso que JMT mencione a lobotomia com o intuito de estabelecer uma comparação, que crê absurda, com a "opinião" da psicóloga. É que além de internados em asilos e condenados como criminosos, muitos (e muitas) homossexuais foram lobotomizados; era um dos muitos "tratamentos" a que os submetiam como "doentes mentais".
Tempos horríveis, dos quais Maria José Vilaça sente nostalgia, como se percebe na citada entrevista: "A partir do momento em que a nossa cultura defende e até incentiva a ver a homossexualidade como uma coisa normal, as pessoas já nem se põem a questão se é certo ou errado, se estão bem ou se estão mal, se é uma perturbação ou não. E então vivem-na como normal, o que faz com que cada vez se generalize mais. Nós sabemos que uma coisa que é errada, se a lei ou a moral comum a torna correcta, deixa de se pôr a questão, deixa de ser um problema. Às tantas também é um problema cultural grave. (...) "É preciso que a pessoa se sinta mal com isso (...). E que queira mudar."
É esta "opinião" que JMT nos exorta a "rebater com argumentos sustentados". Sério, devemos debater com Maria José Vilaça se os homossexuais são ou não doentes e devem ou não ser discriminados, perseguidos e levados ao desespero de modo a procurarem pessoas como ela? Já agora, chamamos os tipos do Daesh para fazer parte da mesa redonda, não? E que tal aproveitar e debater também se a mutilação genital feminina é ou não uma boa prática clínica?
Percebe-se que agora que Trump ganhou as eleições na América com um triunfal discurso "pós-facto", com o apoio da Ku Klux Klan e nomeando um antisemita para seu braço direito, há quem ache que entrámos na máquina do tempo e voltámos aos anos trinta do século passado; que o ódio, a mentira e o retrocesso são o novo normal. Que temos de tratar com respeito, talvez mesmo com reverência, como se valessem o mesmo que a racionalidade, consensos científicos e factos comprovados, as "opiniões" alucinadas, baseadas em mentiras e crenças, de racistas, sexistas, homofóbicos e fundamentalistas religiosos. Mas não, João Miguel Tavares, não temos. Melhor: não devemos. Não banalizaremos o mal. Alguém que quer, através da prática clínica, impor aos outros, insensível ao sofrimento que causa e louvando-o até como "redenção", as suas crenças religiosas, não deve ter licença para o fazer. É para isso que servem as leis e as ordens profissionais: para garantir que ninguém usa o poder que lhe é conferido por uma certificação oficial para subverter a sua missão, infringindo direitos fundamentais e incentivando discriminações que a Constituição interdita. Porque está errado. Porque é maldoso. Porque destrói vidas. Não está em causa calar Maria José Vilaça: pode subir a púlpitos, escrever artigos, dar entrevistas, ir à TV pregar a sua visão do mundo e dos homossexuais. Mas não como psicóloga. Porque isso, sim, é uma total anormalidade