À procura de Rayan

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O pequeno Rayan caiu num poço!

Numa pobre e longínqua aldeia marroquina.

Tinha cerca de trinta metros de profundidade, o poço, que além de fundo era estreito. Era estreito e escuro! E o pequeno Rayan caiu, numa longínqua e pobre aldeia de Marrocos, no poço.

Não podia ter caído, não devia ter caído, mas a vida é assim, cheia de poços estreitos, fundos e escuros onde por vezes caem os meninos que não podiam, que não deviam cair.

Era fundo, estreito e escuro.

O pequeno Rayan teve medo e pediu ajuda!

E a ajuda chegou, tão rápido quanto possível, à longínqua aldeia marroquina onde havia um poço onde havia caído o pequeno Rayan.

E com a ajuda chegou também a notícia de que havia um pequeno Rayan caído num poço numa pobre e longínqua aldeia marroquina.

E com a notícia chegaram os seus divulgadores, em maior número do que os necessários para tentar resgatar do poço o pequeno Rayan.

E o mundo emocionou-se.

O mundo deixou-se emocionar com a notícia do pequeno Rayan caído no poço, e seguiu, centímetro a centímetro, metro a metro, todos os avanços e recuos que a equipa que tentava resgatar o pequeno Rayan fazia, com pouco espaço e em condições difíceis, sempre acompanhados pela atenção mediática que incessantemente relatava o socorro que se queria imediato.

Por fim, o socorro abeirou-se do pequeno Rayan, que tinha passado cerca de cinco dias no fundo de um poço frio, estreito e escuro, sozinho, alimentado pela esperança que lhe era transmitida pelos adultos que conseguiam contactá-lo e pelos escassos alimentos lhe chegavam com dificuldade.

E o mundo emocionou-se outra vez quando, em directo, pôde ver que a equipa tinha conseguido tirar o pequeno Rayan do fundo do poço estreito, escuro e frio nos confins de uma pobre aldeia marroquina.

E o mundo chorou quando soube que o pequeno Rayan sucumbira após cerca de cinco dias enclausurado no fundo de um poço frio, escuro e estreito, com cerca de trinta metros de profundidade e trinta centímetros de diâmetro.

E o mundo emocionado, no dia seguinte esqueceu o pequeno Rayan que deixou de ser notícia, e focou a sua emoção para uma outra qualquer realidade existente nos poços fundos e estreitos, frios e escuros da vida.

A morte do pequeno Rayan no fundo do poço não é diferente da morte de um outro menino na beira da praia, também exaustivamente noticiada, mas também rapidamente esquecida, ou das mortes de tantos meninos vítimas dos poços fundos e estreitos, frios e escuros que a humanidade vai escavando e onde vão caindo os pobres e desamparados, à espera que haja uma equipa que os salve, sem se importarem se são ou não notícia suficiente para emocionar o mundo, mesmo que sendo-o, o destino seja o esquecimento depois de a notícia arrefecer!

A morte do pequeno Rayan que caiu no fundo de um estreito e frio poço numa longínqua aldeia de Marrocos, tal como as mortes de todos os meninos que não podiam ter morrido, não pode ser apenas mais uma página de notícia, esquecida logo que a notícia deixa de ser notícia.

O mundo tem a obrigação de se emocionar sempre que morre um menino num poço, numa praia ou na cama de um hospital, mesmo quando não é notícia de primeira página.

E cabe-nos a nós adultos fazer com que o mundo se possa emocionar sem ser necessário recorrer à primeira página das notícias.

A emoção do sentir sem ser necessária a notícia é duradoura, enquanto que a emoção da notícia, por forte que possa parecer, é passageira até que chegue outra a apelar outras emoções ou outras sensações, como a procura de outro pequeno Rayan caído num poço de uma qualquer aldeia longínqua.

Médico

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