À procura de amor nas ruínas de Leninegrado

O cinema do jovem russo Kantemir Balagov chega finalmente ao circuito português. Depois do anterior <em>Tesnota</em> ter vencido a edição de 2017 do LEFFEST, o novo <em>Violeta</em>, intimíssimo retrato do pós-guerra em Leninegrado, estreia nas nossas salas.
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Vem da Rússia, com muito amor. Distinguido no último Festival de Cannes com os Prémios FIPRESCI e Melhor Realizador da secção Un Certain Regard, Kantemir Balagov, com apenas 28 anos de idade, é já um nome que vale a pena fixar. Tinha surpreendido em 2017 com Tesnota, filme (produzido pelo seu mentor, Aleksandr Sokurov) que se centrava no rapto de um jovem casal de uma comunidade judaica, em 1998, na cidade de Nalchik, República da Cabárdia-Balcária, e agora renova a sensação de grande promessa da cinematografia russa com o espantoso e trágico Violeta, título de uma infinita dor refletida em imagens infinitamente belas.

A personagem em que se baseia o título, Iya (interpretada com extraordinária contenção pela debutante Viktoria Miroshnichenko), é enfermeira num hospital que trata os soldados feridos na guerra. Estamos em Leninegrado, 1945, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, e ela é um dos seres com marcas traumáticas do conflito armado: volta e meia vemo-la paralisada, em estado catatónico, com a respiração entrecortada e o olhar fixo. Tudo para durante breves segundos; a vida suspende-se. Depois disso, as coisas voltam ao "normal". E a bondade com que cuida dos feridos no dia-a-dia não passa despercebida aos profissionais que com ela trabalham. Bondade essa que será testada quando a sua melhor amiga, Masha (Vasilisa Perelygina), regressar da frente de batalha, juntando o seu trauma ao de Iya e levando ao limite a busca por uma manifestação de amor no meio da ruína em que se transformou a cidade e as pessoas. Ruína física e psicológica.

A câmara fixa-se nestas duas jovens mulheres, como que a sondar a matéria da sua dor, e vai dando conta do contraste entre elas. Se Iya, cuja figura alta, muito magra e de postura reservada, se mantém como uma beleza etérea e hostil aos avanços masculinos, Masha, ruiva e sorridente, dilacerada por outra desgraça recente, entrega-se aos prazeres que lhes estão acessíveis, numa espécie de sobrevivência emocional. Nenhuma parece saber ao certo como será possível reconstruir as suas vidas no clima de paz recém-adquirida, mas estão unidas e é dessa violenta intimidade que se faz Violeta.

Em cores intensas e com um impressionante rigor de composição visual, o filme de Balagov colhe a angústia feminina sem ceder a qualquer convenção do relato histórico - ou por outras palavras, estas duas personagens não estão inscritas nos códigos comuns de perceção. O seu vínculo interior é quase uma linguagem abstrata.

Alojando a narrativa no realismo de um contexto preciso - o pós-guerra em Leninegrado - o jovem cineasta encena o horror colado à pele das suas gentes sem precisar de excessivas demonstrações dramáticas. Estas estão lá sob um olhar singularmente terno. O silêncio é, de resto, testemunha de quase tudo, e a cena mais dolorosa deste filme passa-se numa quietude perturbadora... Caso para dizer que Kantemir Balagov é dono de uma sensibilidade fora de série. O seu cinema vai ser (já é!) para seguir com toda a atenção e mais alguma.

**** Muito bom

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