A poesia do evangelho segundo Pasolini

Cinema do sagrado que fala à modernidade ou simplesmente uma das obras-primas de Pasolini, <em>O Evangelho Segundo São Mateus</em> regressa às salas em cópia restaurada. As comemorações do centenário do realizador italiano já começaram.
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Regra geral, aconselha-se alguma cautela com o uso da palavra "poesia" junto de "cinema", para evitar cair na banalização. Mas se há realizador que ensaiou, na forma e na substância, um cinema tangente da poesia, o seu nome é Pier Paolo Pasolini; ele próprio um homem das letras e do pensamento, que se aproximou da arte cinematográfica como expressão última da sua visão do mundo. A oportunidade de redescobrir agora alguns dos seus filmes em sala - uma operação que começou na semana passada com a sua primeira obra, Accattone (1960), e prossegue com mais cinco títulos, até 12 de maio - é tão especial quanto oportuna.

Enfim, não será por causa da Páscoa que (re)ver O Evangelho Segundo São Mateus (1964) por estes dias se torna pertinente. Mas no contexto da rotina que dita a exibição de telefilmes sobre a vida de Jesus, narrada de fio a pavio como uma reza exaurida, esta reposição é um bálsamo. Estamos perante uma obra(-prima) de veemência absoluta, um grito primordial, que tanto nasceu de um desejo de sacudir "a burguesia estupidamente lançada para um futuro que é a destruição do homem" (dito por Pasolini), como de uma demanda pela vibração poética do cinema. O realizador seguiu essa poesia contida no texto de Mateus para idealizar um filme que em tudo escapa aos valores de produção da época e à singeleza do biopic. O Cristo de Pasolini, interpretado por Enrique Irazoqui, é o mito feito homem que se define pelo uso da palavra e não tanto pelo seu calvário (a Paixão é aqui uma breve passagem final e não o coração do filme).

Mas sobretudo, O Evangelho Segundo São Mateus vem na linha de uma conceção estético-religiosa que marcou os anteriores Accattone e Mamma Roma (1962). A saber: o enaltecimento do divino que está presente no humano, e de modo muito particular nas figuras à margem da sociedade - essas que comoviam Pasolini e com quem ele estabeleceu laços, tornando-as a matriz desta primeira fase do seu cinema. É daí que vem a música de Bach, o espiritual negro Sometimes I Feel Like a Motherless Child e outros temas que na banda sonora de O Evangelho sublinham a vida das imagens, estas, por sua vez, inspiradas pela pintura (de Piero della Francesca, por exemplo).

E depois há os grandes planos dos rostos na paisagem, entre os quais se encontra o de Susanna Pasolini, a mãe do realizador, no papel de Maria. Esses rostos sucedem-se uns aos outros com o pathos da música a exaltar a sua transcendência, mas Pasolini não deixa de os filmar com um teor documental, como que a impedir que se tornem rostos petrificados de um "drama de época". O Evangelho Segundo São Mateus inscreve-se numa rutura com o mundo moderno, mas é pelo seu fôlego estilístico de modernidade que faz o mais eloquente comentário à degradação do homem nos seus fundamentos antropológicos. Foi Martin Scorsese quem disse que pensou fazer uma versão contemporânea da história de Cristo, "ambientada em habitações públicas e nas ruas do centro de Nova Iorque." Mas quando viu o filme de Pasolini percebeu que "esse filme já tinha sido feito."

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