A partir deste sábado é possível casar sem direito a herança. Saiba o que muda
A partir de amanhã vai ser possível casar sem que os cônjuges se tornem herdeiros um do outro, uma situação que até agora estava vedada pela lei portuguesa. Para isso, é preciso optar pelo regime de separação de bens e assinar uma convenção antenupcial em que o casal declare que renuncia à herança de forma recíproca.
A alteração resulta de uma proposta avançada no Parlamento pelo PS, promulgada no início de agosto pelo Presidente da República e que entra em vigor este sábado, 1 de setembro. O texto final da lei acabou por resultar de um acordo entre socialistas e sociais-democratas e teve a aprovação de todos os partidos, menos do PAN, que se absteve.
Até agora, o Código Civil estabelecia os cônjuges como herdeiros legitimários, sem qualquer exceção. Significa isto que são herdeiros "privilegiados" - são, aliás, os primeiros a ser chamados a receber a herança, e não podem ser afastados dessa condição nem mesmo pelo detentor do património, através de testamento. Este princípio não sofre alterações e mantém-se na lei como regra geral.
Mas os dois membros de um casal podem agora acordar que não serão herdeiros legitimários um do outro. Ainda assim, a lei - que na versão inicial foi criticada por deixar desprotegidos os cônjuges, numa eventual situação futura de maior fragilidade - mantém algumas garantias, em particular quanto à morada de família.
De acordo com o diploma que entra em vigor amanhã, "sendo a casa de morada de família propriedade do falecido, o cônjuge sobrevivo pode nela permanecer, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio". Um prazo que pode ser prolongado pelo tribunal, em caso de "especial carência" do viúvo/a. Caso contrário, ao fim dos cinco anos "o cônjuge sobrevivo tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado", salvo se os legítimos herdeiros provarem que necessitam do imóvel para habitação própria.
O direito à morada de família deixa de ser válido se o cônjuge sobrevivo não habitar a casa por mais de um ano, "salvo se a razão dessa ausência lhe não for imputável". E este preceito também não pode ser invocado se o viúvo ou viúva "tiver casa própria no concelho da casa de morada da família" e nos concelhos limítrofes, caso se trate de Lisboa ou Porto.
Mas esta questão assume outros contornos se o viúvo tiver 65 anos ou mais: nesse caso, o direito a ficar na casa é vitalício.
A lei mantém igualmente o direito a alimentos sobre a herança, bem como às prestações sociais por morte. E também admite que o titular do património possa, em vida, fazer doações ao cônjuge, tendo como teto máximo a parte que lhe caberia caso este fosse herdeiro legitimário.
Apresentado em fevereiro, o projeto do PS foi anunciado com o objetivo de proteger os filhos de primeiros casamentos, que perdiam para o novo cônjuge parte considerável do património a herdar. "Caso típico: duas pessoas que têm filhos de uma anterior ligação e querem casar-se. Não o podem fazer sem que o casamento prejudique potencialmente o interesse patrimonial dos filhos de cada um. O novo cônjuge torna-se necessariamente herdeiro do outro e, portanto, quando um deles falecer, o cônjuge e os filhos deste vão todos concorrer à herança", disse então ao DN Fernando Rocha Andrade, um dos deputados que avançou com a proposta.
"Tenho essa perceção, de casos que conheço, de que isto é um obstáculo a um segundo casamento. Ou ao primeiro, se houver filhos que não tenham sido de um casamento", explicou o parlamentar socialista.
No entanto, a lei, de caráter geral, aplicar-se-á em qualquer situação, ainda que nenhum dos cônjuges tenha filhos.
A proposta dos socialistas foi recebida, pelas diversas entidades consultadas pelo Parlamento, como um passo no sentido certo. Mas um pequeno passo - a generalidade dos pareceres enviados à Assembleia da República defendia uma mudança mais significativa no direito sucessório português. Foi o caso do Instituto dos Registos e do Notariado (IRN): "O estatuto sucessório do cônjuge sobrevivo, que tem sido, aliás, objeto de inúmeras críticas por parte dos juristas, deve ser (re)pensado como um todo, de forma mais abrangente, eventualmente não desconsiderando uma maior autonomia da vontade." E até do Conselho Superior da Magistratura: "As dúvidas sobre o regime aprovado em 1977 não são novas e ganham especial e renovado vigor com este projeto de lei."
Também a Ordem dos Notários defendeu que se devia aproveitar esta alteração na lei para ir mais longe, ou pelo menos solucionar outros problemas, que diz serem comuns na partilha de heranças. Em entrevista ao DN, Jorge Silva, bastonário da Ordem, apontou o exemplo dos viúvos chamados a dividir a herança ou com os filhos ou com os pais do falecido. Em muitos casos, o único património é a casa da família, pelo que o cônjuge sobrevivo tem de pagar parte do valor do imóvel aos restantes herdeiros ou, não tendo dinheiro para o fazer, tem de vender a casa.
A lei portuguesa estabelece como herdeiros legitimários - que não podem ser deserdados salvo situações muito excecionais, como ter cometido um crime contra o titular do património - os cônjuges, os descendentes (filhos) e os ascendentes (pais). Estes herdeiros dividem entre si (em diferentes proporções, consoante a condição e o número de pessoas) a "legítima", a quota-parte da herança que lhes é obrigatoriamente destinada, e que não pode ser alterada nem sequer por testamento.
A existirem herdeiros legitimários, estes dividem entre si a herança, excluindo outros herdeiros. Caso não haja herdeiros legitimários e o falecido não tenha deixado testamento, são então apontados outros familiares (avós, irmãos, tios, sobrinhos, primos) e, em última instância, o Estado. São as chamadas "classes de sucessíveis", chamados a receber a herança por esta ordem:
- Cônjuge e descendentes
- Cônjuge e ascendentes
- Irmãos e seus descendentes
- Outros colaterais até ao quarto grau
- Estado
A primeira classe sucessível exclui as seguintes: ou seja, havendo viúvo e filhos os pais não são chamados à herança e assim sucessivamente.
Por outro lado, a herança nada tem que ver com o regime de bens do casamento - ainda que casados com separação de bens, os cônjuges são sempre (com a exceção agora introduzida na lei) herdeiros legitimários.