A padeira que não marcava golos e não foi para o Panteão
Há uma imensa ironia, um humor tremendo e um experimentalismo sonoro incessante nos Gaiteiros de Lisboa, que trazem agora, 25 anos depois da sua estreia em disco, o sexto álbum de originais, Bestiário. Prova disso é Brites de Almeida - a canção que é um hino à padeira de Aljubarrota com que antecipam o novo disco - de um humor delicioso que nos prende nas palavras como na música.
Este é o grupo que experimenta, em cada novo trabalho, resgatar a música tradicional portuguesa com uma releitura contemporânea que nunca abastarda a sonoridade popular de cada canção.
A exigência de Carlos Guerreiro, Miguel Quitério, Miguel Veríssimo, Paulo Tato Marinho, Paulo Charneca e Sebastião Antunes, é singular: já criaram instrumentos não convencionais, como túbaros de Orpheu, o cabeçadecompressorofone, clarinetes acabaçados, o orgaz, o espátulofone, a serafina ou mesmo um tubo estriado com búzio e um balde de gelo chinês.
Do tradicional mantêm uma atenção aos tempos de hoje, de "língua afiada", como descreve Carlos Seixas no prefácio a Bestiário. Basta lembrar Avejão, de Avis Rara (o anterior álbum de originais de 2012), sobre a terra dos patos bravos, que mais parece um vespeiro em que andam todos à bicada para chegar ao poleiro. Ou Proparóxitonias do mesmo álbum, onde "também os frades canónicos exploram recursos hídricos".
Ou esta nova canção que, entre os tradicionais sopros, percussões e cordas, nos recorda que "Brites de Almeida/ seja história ou seja lenda/ revelou-se na contenda/ modelo de liberdade/ fazia pão, broa de milho e bolos/ não sabia marcar golos/ não foi para o Panteão".
Depois de A História, a coletânea de 2017, onde apresentaram Roncos do Diabo, que surge também no alinhamento de Bestiário, este álbum quebra um silêncio de sete anos de originais.