Os Gaiteiros de Lisboa voltaram (ou o diabo acordou)

O grupo está de regresso aos discos e aos palcos, com <em>A História</em>, e o concerto desta noite no Tivoli, no âmbito do Misty Fest, que terá como convidados Sérgio Godinho e Rui Veloso.
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À saída do Teatro da Luz, onde acabavam de tocar, Carlos Guerreiro conta aos companheiros que com ele formam os Gaiteiros de Lisboa que, em Sendim, pela altura do Natal, se convidava um gaiteiro para tocar e, no final, "perseguiam-no, roubavam-lhe a gaita, e queimavam-na. Os gaiteiros já sabiam e levavam uma para tocar e outra que não prestava, para queimar". Traços como este, das tradições portuguesas, sabem-nos eles às centenas. O grupo, que depois de uma ausência de alguns anos regressa aos palcos e aos discos com o concerto de hoje no teatro Tivoli, no âmbito do Misty Fest, onde terão como convidados Sérgio Godinho e Rui Veloso, e com o disco A História, que revisita canções da história do grupo, conta agora com uma nova formação. A Carlos Guerreiro e Paulo Marinho (também dos Sétima Legião) juntaram-se Sebastião Antunes (voz e percussões), Miguel Quitério (gaitas-de-foles, uillean pipes, flautas e voz), Carlos Borges Ferreira (voz e percussões) e Paulo Charneca (percussões e voz).

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Porquê tanto tempo de ausência? "Deve-se um bocado a uma inércia do antigo casamento, com os quatro elementos que saíram. Era um casamento estafado", explica Carlos Guerreiro. Depois da separação, conta, "chegámos a ter um casting. Tínhamos mais respostas do Porto, é engraçado. Eu dizia: vocês não estão a perceber bem. Nós somos um grupo de Lisboa e nesta fase vamos ter de ensaiar todos os dias durante não sei quantas semanas ou meses."

Além de serem de Lisboa - e isso mantém-se -, quem não os conhecer pode estranhar que estes Gaiteiros de Lisboa tragam para palco muito mais do que o instrumento que lhes dá o nome. O grupo nasceu no início dos anos 1990 como "grupo de divulgação da gaita-de- foles, tinha objetivos culturais militantes, pedagógicos, era muito ligado à etnologia." É com a entrada de Carlos, José Mário Branco, Rui Vaz, e José Manuel David que o grupo se abre, em 1993, à criação. "Uma das premissas foi: nunca deixar a gaita-de-foles para trás, tudo o que acontecesse em cada tema iria andar sempre em torno da gaita. Isso acabou por gerar um som completamente novo. Eu, o Zé David e o Rui Vaz vínhamos da música coral, de interpretar temas do [etnomusicólogo Michel] Giacometti, do [Fernando] Lopes-Graça, temas tradicionais."

É Carlos, de quem se ouve a voz ribombante em Roncos do Diabo, o novo tema do disco A História, quem a conta aqui. Mas numa história assim é difícil andar em linha reta. Ao falar do começo do grupo, essa Avis Rara (designação roubada ao anterior álbum), Carlos fala de José Mário Branco, com quem já tinha trabalhado no GAC - Vozes na Luta, e chama-lhe "um dos santinhos do meu altar, com o Zeca [Afonso], o Sérgio [Godinho], e o Fausto. Tive a sorte de trabalhar com eles todos e de aprender com eles todos." Um dos santinhos desse altar, Sérgio Godinho, de quem Carlos foi músico, compôs Talvez Que Sonhando, que faz parte do primeiro álbum Invasões Bárbaras, e que agora torna a aparecer em A História. Não será esse tema, mas Avejão, de Avis Rara, que partilharão esta noite. Além dessa, Quatro Quadras Soltas, do cantautor, aparecerá também em palco. Com Rui Veloso, de quem Carlos também foi músico no disco O Auto da Pimenta, partilharão País do Gelo, desse álbum, e Comprei Uma Capa Chilrada, dos Gaiteiros de Lisboa.

"Neste momento o que é mais difícil para mim é ter um grupo novo, tudo novo, e estar a tocar os temas antigos. É como o tipo que enviuvou, casa outra vez, e a nova mulher anda a vestir as coisas da que morreu", diz Carlos, contando que o grupo já está a trabalhar num novo álbum. E em relação ao tema Roncos do Diabo, a novidade desta História, que ele compôs para o grupo musical homónimo, e que ainda não tinha sido gravada, explica: "Tem a ver com um certo imaginário satânico que nós se calhar teremos protagonizado há uns anos atrás. Um bocado naquela coisa de nos separarmos da música tradicional bonitinha e tratada de forma paternalista. Resolvemos assumir um certo lado irreverente, e enveredámos por uma certa opção satânica. Era até mais pela nossa atitude do que por afirmações que fizéssemos. Nunca tive nenhuma adoração satânica. É completamente teatral."

Tal irreverência, como se perceberá escutando-os, não significa que os Gaiteiros tenham virado costas à música tradicional portuguesa. Antes, significa que entre as duas partes "não há equívocos: sabemos exatamente o que é que cabe onde, e de vez em quando apetece-nos tratar um tema de uma forma mais próxima da tradição, e fazemo-lo." Eles que, usando as recolhas de Giacometti, Armando Leça, ou Artur Santos, a certa altura também puseram a mochila às costas e foram "por aí fora", recorda Carlos. "Nós somos um país que, apesar de sermos pequeninos, temos uma riqueza... Às vezes espanto-me quando olho para este retângulo pequenino com uma diversidade tão grande de música, de instrumentos..."

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