Existe uma velha anedota que conta o diálogo entre duas ovelhas que estão a pastar perto dos laboratórios de cinema da Tóbis e comem restos de película do filme Ben-Hur que alguém deitou para na erva de um baldio; uma delas diz para a outra: "Gostei mais do livro!" Essa é uma situação frequente para quem vai ao cinema, ou agora a ver séries em casa, e fica desiludido com as adaptações feitas sobre livros que foram um grande sucesso e não correspondem ao original quando vistas no ecrã! Será o caso do romance Gambito de Dama, de Walter Tevis, que vai chegar às livrarias na próxima semana após a série ter alcançado um interesse em Portugal - e no resto do mundo - como há muito não se observava?.O sucesso da série Gambito de Dama foi excecional, transplantado de uma forma que ninguém questiona apesar das intermináveis partidas de xadrez em todos os episódios, jogo pouco em moda até ter a série estreado. A interpretação magistral de Anya Taylor-Joy contribui em muito para que o leitor se reveja no romance de Walter Tevis, tal como a forma como o livro foi adaptado. Ou seja, qualquer tentativa de questionar a adaptação logo que o livro seja lançado não terá sucesso. Há muito que um romance não é tão respeitado e os catorze capítulos são quase decalcados ao longo dos episódios que a série teve como se a visão do escritor fosse tão cinematográfica como literária..A única vantagem que a série oferece é a visualização do mobiliário vintage dos cenários, particularidade impossível de obter em qualquer romance sem perder o ritmo da escrita. Nada que a adaptação não tenha tido a vida facilitada, pois Tevis esforçou-se bastante e conseguiu fazer sempre um retrato do ambiente bastante consistente. Nenhum leitor pode evitar fazer comparações com o livro após ter visto a série, daí o que agora se pode ler mais do que satisfaça. Basta ler um parágrafo de um dos subcapítulos da parte 5 do romance Gambito de Dama: "Nunca vira nada como o Hotel Gibson em toda a sua vida. O tamanho, o bulício, os lustres brilhantes do lobby, os grandes tapetes vermelhos, as flores, até mesmo as três portas giratórias e o porteiro de uniforme que permanecia ao lado delas, tudo aquilo era avassalador." Está lá tudo!.Citaçãocitacao"Se existe um fio condutor no meu trabalho é escrever sobre falhados e solitários, tanto que inventei o termo "nascido falhado". Não foi por acaso, sempre fui atraído pela luta entre vencer e perder", dizia Walter Tevis.".Já antes a descrição da transformação do vestuário em Beth Harmon fora "avassaladora", ao levar-nos com ela à compra de uma camisola de caxemira, sapatos de atacadores de camurça, meias altas axadrezadas feitas de 100% de lã, vestimenta que até há pouco tempo não podia adquirir nos armazéns pobretanas a que a mãe que a adotara a levava. Uma personagem secundária, mas tão importante no carrossel de figuras à sua volta como é o zelador que a ensina a jogar xadrez, ou a amiga Jolene, entre outros..Em muito o romance de Walter Stone Tevis (1928-1984) é autobiográfico. Beth Harmon desde cedo fica habituada aos "comprimidos verdes" que lhe dão no orfanato para acalmar as jovens, numa descrição que é memorável quando tenta chegar ao frasco onde eles passaram a estar indisponíveis; depois vai-se apresentado ao álcool, começando por saborear o efeito da cerveja no seu corpo e mente, depois o vinho, também este último numa descrição memorável, quando fica um fim de semana na casa de uns colegas, com um dos quais perde a virgindade, e descobre que há outros prazeres na vida mesmo que um deles seja a solidão, mas nenhum deles superior ao do frisson do xadrez..A biografia de Walter Tevis mostra como se deverá ter inspirado em si próprio para descrever as sensações que os comprimidos, o álcool e mesmo os estupefacientes, provocam no ser humano. Nada que não estivesse muito na moda nos Estados Unidos nesses tempos em que se descobria o efeito do LSD, e outros produtos, e que enchiam páginas de livros de autores famosos como, no romance de Aldous Huxley, As Portas da Perceção. Mas também de problemas de saúde próprios, afinal devido a um problema de coração esteve internado em criança num estabelecimento onde lhe era ministrado um medicamento com efeitos semelhantes aos dos comprimidos verdes..O escritor fumava cigarros, bebia álcool, e era um jogador; um trio de vícios que está bem retratado na protagonista Beth Harmon, mesmo que coloque constantemente em contraposição o bom comportamento dos grandes mestres do xadrez, como faz com um americano e, principalmente, com os soviéticos. Fica também memorável o choque de Beth Harmon quando se confronta com o seu futuro oponente, Borgov, numa visita deste ao jardim zoológico com a família. Reconhece-o das fotografias publicadas na revista Chess Review, uma das suas bíblias. Todas estas referências são em muito autobiográficas, pois Tevis era um bom jogador de xadrez e pela certa utilizou muito da sua personalidade no modo como constrói a sua protagonista, repleta de memórias suas que, aliadas a uma formação universitária e ao ensino de Literatura Inglesa, entre outras disciplinas que iam desde Ciências a Educação Física, lhe abriram as portas para a escrita como profissão..Citaçãocitacao"Na ressurreição de Gambito de Dama, foram escritos milhares de artigos em todo o mundo, situação que quase inexistiu nos últimos meses de vida de Walter Tevis, quando livro, apesar de se tornar uma obra de culto, passou demasiado despercebida.".O atual sucesso de Gambito de Dama pouco tem a ver com o insucesso de quando se publicou o romance em 1983. Quando foi lançado chegou a estar cinco semanas na lista dos best-sellers do jornal The New York Times, mas, por exemplo, esta publicação deu-lhe muito mais atenção em 2020 a propósito da série da Netflix do que à data da edição do livro. Na ressurreição de Gambito de Dama, foram escritos milhares de artigos em todo o mundo, situação que quase inexistiu nos últimos meses de vida de Walter Tevis, quando livro, apesar de se tornar uma obra de culto, passou demasiado despercebida. Desta vez, foi traduzida em duas dezenas de línguas e todos querem ler um original, em que os estilo de Tevis surge com grande esplendor. Não se furta ao registo seco, de parágrafos curtos, muito limado nos excessos desnecessários a um romance, e que o obrigam a ler de um fôlego. Mesmo com a série na memória, Gambito de Dama será uma das grandes leituras para este desconfinamento em curso..Quanto ao aspeto biográfico, não vale a pena fugir. Além do cenário real de uma disputa no xadrez que se tornou um caso da Guerra Fria que ninguém ainda esquecera no início dos anos 1980, a do norte-americano Bobby Fischer como o russo Boris Spassky, a protagonista do romance tem muito de Walter Tevis. Até o seu filho, Will, voltou à cena e retratou o pai assim: "Ele é o herói de todos os seus livros. Ou melhor, o anti-herói." É verdade, pois o próprio dissera numa entrevista à época do lançamento do romance que sempre escrevera sobre "falhados e solitários". Foi mais longe: "Se existe um fio condutor no meu trabalho é escrever sobre eles, tanto que inventei o termo "nascido falhado". Não foi por acaso, sempre fui atraído pela luta entre vencer e perder." E o seu caso nunca deixou de ser o de uma verdadeira ovelha ronhosa apesar de poder ser outra coisa na vida..Numa entrevista dada em 1981, Walter Tevis conta como viveu até chegar perto de dar início à escrita de Gambito de Dama. Fala dos seus livros, começando pela primeira fase, as histórias de ficção científica que reuniu em 1957 no livro Longe de Casa. Era uma altura em que dava aulas no estado do Kentucky e escrevia mais por dinheiro do que por amor à arte: "Não conhecia os editores, apenas lhes enviava as histórias. Havia quem as comprasse, depois publicasse enquanto eu ficava à espera de ver no que dava. Mas o que fazia era aquilo que gostava na altura, agora talvez não me interessassem mais escrever sobre esses temas." Conforme avança na resposta, encontram-se prenúncios da personagem Beth Harmon: "Era a maneira de permanecer distante dos meus sentimentos, de trabalhar em cima de um material longe da realidade que era a vida. Eu era um bom jogador de xadrez nessa época e creio que a ficção científica e esse jogo não exigiam o conhecimento dos meus instintos e ao mesmo tempo mantinham-me a cabeça noutra esfera"..Antes do xadrez, houve o bilhar. Este jogo é o tema do primeiro livro, The Hustler, que também foi adaptado ao cinema. Ao contrário do xadrez, onde Tevis se considera um jogador razoável, no bilhar era medíocre: "Não conseguia derrotar ninguém no salão nem desafiar profissionais sem estar certo de perder mesmo que tivesse esperança de os vencer." O filme teve sucesso, tal como um dos romances que escreveu depois, O Homem que Caiu na Terra, que também foi adaptado ao cinema: "O protagonista era o David Bowie, alguém que eu nunca imaginara possível ser o melhor ator para o que eu tinha escrito.".Quando chega a vez de Gambito de Dama ser adaptado, já o cinema não é o ecrã principal, nem os estúdios de Hollywood os responsáveis pelos maiores sucessos. A pandemia de covid-19 está em curso e ninguém pode sentar-se nas salas de cinema, no entanto pode assistir em qualquer dispositivo tecnológico inventado após Walter Tevis ter morrido. E, sem poder sair de casa, os espetadores confrontam-se com uma história de uma órfã que tinha tudo para ser mais um habitante comum deste mundo, no entanto o dom para jogar xadrez leva-a a até ao desafio supremo: um(a) americano(a) a vencer um soviético naquela que é uma das coutadas em que os russos eram invencíveis..Para um dos produtores da série da Netflix, Allan Scott, Walter Tevis é "um dos melhores escritores norte-americanos do século XX e não um "bom autor de segunda linha" como Tevis se definia. Também revelou que a demora em adaptar Gambito de Dama, cujos direitos adquiriu pouco depois do seu lançamento, se deveu ao facto dos estúdios considerarem o tema do xadrez destinado ao maior fracasso comercial possível.".Quanto à pergunta inicial, a adaptação de Gambito de Dama não desilude e qualquer ovelha armada em crítica terá essa opinião. Se lhe fizessem a mesma pergunta sobre a adaptação deste último romance publicado por Tevis, não teria qualquer dificuldade em afirmar que gostava mais do livro. Ou, pelo menos, tanto do livro como do filme e que se revia no original a cem por cento. Situação que não aconteceria à ovelha com A Cor do Dinheiro, romance de Tevis que Martin Scorsese dirigiu e que quase nada tem a ver com a narrativa original, onde nem Paul Newman ou Tom Cruise dão protagonismo às histórias do livro original a não ser no cenário geral em que o bilhar é rei..Walter Tevis.Editora Suma de Letras.358 páginas.O livro que foi proibido em Espanha é agora uma série de televisão."Os contrabandistas são a gente mais honrada que há", diz um dos depoimentos que estão em mais de trezentas páginas do livro Farinha do jornalista Nacho Carretero, que decidiu fazer a história e a radiografia de um dos grandes negócios da vizinha Galiza: o tráfico de droga. O livro que já está disponível em Portugal chegou a estar proibido em Espanha devido ao seu conteúdo, mas agora dá o salto das páginas para uma série de televisão que está a ser emitida pelo canal AMC. A "farinha" em causa não é mais do que a cocaína que na década de 1980 entrava na Península Ibérica através daquela província espanhola, num tráfico em que as redes dos pescadores arrebanhavam os pacotes certos de droga em vez dos incertos peixes e, como a crise era grande, foram muitos os que entraram na atividade do contrabando para fugir à pobreza..O livro de Carretero é uma radiografia sobre esse tráfico e conta, entre muitos outros relatos, a história de Sito Miñanco. É um pescador que tem um barco rápido e é hábil o suficiente para fugir ao radar das autoridades. Os muitos capítulos do livro refazem um período do comércio de cocaína que entrava na Europa por essa porta e que gerou grandes fortunas aos cartéis responsáveis pela comercialização, bem como inúmeros dramas e alegrias a quem era e não era apanhado nesse enriquecimento rápido. O livro deu tanto nas vistas que o jornal norte-americano, The New York Times, resume bem numa frase a sua opinião sobre o livro: "Na Galiza, a crise no setor da pesca e a explosão do narcotráfico são os dois lados da mesma moeda e Farinha retrata com sentido e interpretações de muito alto nível esse momento"..Nacho Carretero.Editora Desassossego.303 páginas.Ocultismo e poder para explicar a era Trump e a extrema-direita.O pressuposto da investigação Estrela Negra a Pairar é claro e resume-se a uma pergunta principal: haverá poderes ocultos a conduzir a política atual? Claro que o ex-presidente Donald Trump não podia fugir ao tema devido aos comportamentos durante os quatro anos do seu mandato, daí que o autor, o professor de Estudos Transformativos, Gary Lachman, questione se se sabe exatamente quem foi Trump, entre outros líderes analisados neste livro..Segundo Gary Lachman existe a presença invisível de uma influência de certas ideias "esotéricas ou ocultistas" na política do mundo moderno, sendo difíceis de entender de acordo com uma forma "racional e científica" de pensar. Garante que "apesar de a ciência pretender desmistificar tais ideias, elas persistem e dão origem a uma espécie de espólio constituído por um conhecimento alternativo que tem vindo a ser produzido" na cultura e história ocidentais..O autor suporta-se numa investigação que recorre a várias opiniões, designadamente na do filósofo Umberto Eco, de que pensamentos ocultistas tiveram influência em vários líderes, e dá o exemplo de Gandhi. Neste livro, Lachman defende a tese de que existe não só no passado um "elo entre o oculto e a política de extrema-direita" mas também no presente. Não é por acaso, afirma, que se tenha observado uma tentativa desse setor de pensamento na ocupação de muito do espaço político durante a era Trump..Gary Lachman.Editora Gradiva.268 páginas