A noite de núpcias na literatura portuguesa
Está hoje convertida em banalidade e lugar-comum, mas convém lembrá-la agora, recordá-la sempre. Falo da célebre e estafada afirmação de William Faulkner em Requiem for a Nun, aquela que proclama que "The past is never dead. It"s not even past" ("O passado nunca está morto. Nem sequer passado é"). Em 2008, foi parafraseada pelo então senador Barack Obama, num histórico discurso sobre o racismo na América, "A More Perfect Union", que pavimentou o seu caminho em direcção à Casa Branca. Mais tarde, em 2012, os detentores dos direitos autorais de William Faulkner intentaram uma acção contra os estúdios da Sony Pictures, pelo facto de estes terem usado a famosa frase, sem os devidos créditos e réditos, num dos diálogos do filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen, mas o juiz não lhes deu razão, considerando que se tratou de uma citação de minimis, plenamente legítima e razoável.
Às vezes, o passado parece mesmo passado, ou talvez não. É o que sucede quando olhamos para o modo como a noite de núpcias foi retratada pelos escritores portugueses da Belle Époque, entre finais do século XIX e princípios do século XX. Mesmo que não façamos uma antologia exaustiva, ou sequer muito representativa desses textos, ficamos horrorizados e de cabelos em pé ao perceber o horror, o abominável horror, que esse momento constituía para milhões de mulheres, ao longo de anos e anos, décadas, séculos.
Lembremos o nome de Joaquim Alfredo Gallis (1859-1910), hoje totalmente esquecido, ou só recordado para dizer que nos esquecemos dele. Gallis foi um autor prolífico e muito popular na sua época, com livros vendidos aos milhares em Portugal e no Brasil, sobretudo porque, além de uma série de romances mais ou menos "sérios", num conjunto de 12 volumes a que deu o nome de Tuberculose Social (e que cobriam os mais variados assuntos, desde o alcoolismo ao lesbianismo, passando pelo adultério, a corrupção dos políticos e o aluguer de partes de casa), rubricou textos lúbricos e pornográficos, usando o pseudónimo "Rabelais", que de pouco ou nada lhe serviu: no seu tempo, todos mas todos, inclusive o rei D. Carlos e depois D. Manuel II, sabiam que o descabelado "Rabelais" era Alfredo Gallis, jornalista e cronista, escrivão do Arsenal da Marinha e da Corporação dos Pilotos da Barra de Lisboa, administrador do concelho do Barreiro entre 1901 a 1905 (onde, consta, pouco ia, preferindo delegar o trabalho num secretário mais diligente...), secretário do governador civil de Lisboa, Magalhães Ramalho, no seu efémero consulado de cerca de cinco meses, de Abril a Outubro de 1910, até irem ambos borda fora com a implantação da República.
Em vários momentos da sua vasta e picante obra, Gallis descreveu a primeira noite de jovens casais burgueses, tema muito versado, claro, na literatura francesa da época ("Não comeceis nunca o vosso casamento por uma violação!" - Balzac). Um dos seus contos intitula-se precisamente "A noite de núpcias", e foi até republicado recentemente, numa preciosa colecçãozinha de livrinhos eróticos dirigida por António Ventura (Rabelais, Aventuras Galantes, Tinta-da-china, 2011). As personagens, com nomes de opereta - ele Lulu, ela Mimi -, travam contacto carnal, tacteando-se com mil cuidados; ou se preferirmos a versão directa de Alfredo Gallis/Rabelais:
Tocavam-se muito ao de leve, subtis como as brisas da tarde beijam as pétalas dos lírios e das açucenas. A mucosa, altamente sensibilizada com aquela suavíssima fricção, avermelhava pela irritação dos vasos sanguíneos, e ela cerrava os olhos, suspirava debilmente, e deixava-se desfalecer ao contacto abrasador daqueles beijos muito subtis que a entonteciam e excitavam como pequeninas descargas elétricas.
Em resultado disso, consumou-se o acto, tudo correndo bem para Lulu e para Mimi, mas não para nós, obrigados que fomos a ler a inenarrável prosa de Alfredo Gallis, um dos piores escritores portugueses de sempre, o que, atenta a qualidade média das letras lusas, tem foros de alguma proeza, quiçá mesmo de prodígio. Pouco haverá a dizer, na verdade, de um autor que descrevia o órgão sexual feminino como "apertadinha concha do amor", "altar do sacrifício", "gruta de Vénus" (ou "gruta de Calipso"), quando não como "celestial mansão", "porta da sacristia", "silencioso abrigo" ou "misterioso sacrário do gozo". Quanto ao órgão masculino, Gallis retratava-o como "o rei da criação", "o mavioso clarinete, "o deus do prazer" (ou "a alavanca do prazer"), mas também "lança de Cupido", "seta de Cupido" (ou "seta cupidínea") e até "espargo do amor", acompanhado, no mesmo registo hortícola, de "dois bolbos sempre fiéis no seu posto, quais duas sentinelas atentas e vigilantes". O público, como sempre sucede, adorou o estilo e o verbo, venerou-lhe a porca prosa, refocilou com gosto naquela imundície tremenda e esgotou sucessivas edições dos seus livros, que ostentavam títulos como Lascivas, Saphicas, O Abortador, A Luxúria Judaica ou O Marido Virgem.
Depois de Abel Botelho com O Barão de Lavos, de 1891, Alfredo Gallis foi dos primeiros autores a dedicar um livro inteiro ao tema da homossexualidade masculina, O Sr. Ganimedes (Psychologia de um Efebo), de 1906. Por isso, e muito bem, Gallis tem merecido a atenção dos que investigam a literatura homoerótica, com destaque para Fernando Curopos, professor da Universidade de Paris/Sorbonne e um dos responsáveis por uma obra cultural notável, tristemente ignorada, a colecção de clássicos pornográficos e queer, em formato e-book, da editora Index.
Em O Sr. Ganimedes, Gallis descreve outra batalha nupcial e nocturna, desta feita entre Lígia e Bernardino. Na véspera do casamento, D. Benedita, tia de Lígia, deu-lhe uma caixinha com vaselina bórica e industriou-a a submeter-se ao mando do macho:
- Nada de resistências escusadas. É teu marido, e na sua idade essas resistências prejudicam às vezes os entusiasmos dos homens. Deixa-o proceder como ele quiser.
- Mas sem luz.
- Sem luz ou com ela, como ele desejar.
- Mas tenho vergonha, tia.
- Terás; o mesmo me aconteceu a mim, mas acima de tudo é teu marido e não o deves contrariar.
No dia seguinte, processou-se a boda e, depois dela, a fatal noite de núpcias. Bernardino contemplou as "rijas pomas erectas" da esposa, que tinha um "peito alabastrino e escultural", e, em função disso, disse: "- Tem paciência, Lígia. Isto tem de ser". E foi.
Poderemos, como é óbvio, descartar Alfredo Gallis e as suas inconcebíveis figuras de estilo sobre a "furna misteriosa" ou a "relva de oiro que alfombra o Templo do Amor". Porém, dificilmente poderemos negar o valor histórico e documental dos seus livros, o que estes significam de expressão ou testemunho das vivências da intimidade na viragem de fin-de-siècle e nas décadas seguintes. Basta atentar na incrível semelhança entre a descrição que Gallis faz da conversa antenupcial de D. Benedita com a sobrinha Lígia, atrás citada, e outra, essa na "vida real", que a marquesa de Jácome Correia teve com sua mãe, ou vice-versa, nas vésperas do casamento. No seu extraordinário relato autobiográfico, Amores da Cadela "Pura". Confissões, de 1976, Margarida Victória conta, a dado passo, o seguinte:
Minha mãe, na véspera à noite, veio ao meu quarto e teve comigo a seguinte conversa:
- Já deves saber o que te espera. Em todo o caso, previno-te de que a noite do casamento é a pior noite de uma mulher. Oxalá ele tenha a delicadeza de fechar a luz; o teu pai assim fez.
Foi tudo. Não lhe respondi; estava como que paralisada de terror. Andava obcecada por esta ideia, e minha mãe, com a sua conversa, ainda veio agravar a situação.
Quem pesquisar no portal PORBASE, encontrará muitos livros portugueses ou cá traduzidos com o título Noite de Núpcias, prova da centralidade e da importância do tema do ponto de vista literário e, logo, sociológico. Existem, entre outros, Noite de Núpcias: Novela, de Lourenço Caiola, de 1928, da Empresa do Diário de Notícias; Noite de Núpcias: Comédia em um Acto, de Júlio Moutinho, de 1904; Noite de Núpcias: Poemeto original em 24 cantos, de um tal El Chulo, impresso na Tipografia O Pimpão, em 1899 (e também O Banho da Noiva: Poemeto em 14 cantos, do mesmo El Chulo, de 1900, reeditado em 1908). Há ainda Noite de Núpcias, de Luiz António Gonçalves de Freitas, que contou com uma segunda edição em 1898; um Noite de Núpcias: Comédia relâmpago representada com grande êxito no Teatro Salão Foz de Lisboa, com apresentação de Lupe de Bazam, de 1901; e, mais recentemente, na década de 1950, Noite de Núpcias: Contos, de Maria Luísa Ramos, com três edições, pelo menos, a última das quais feita já em 1980. Surge a inevitável Corin Tellado, Noite de Núpcias, em tradução de Alice Chaves, dada à estampa pela Agência Portuguesa de Revistas, em 1957, e, poucos anos antes, em 1950, o exclamativo Que Linda Noite de Núpcias!, de Artur Horta. A revolução de Abril não fez diminuir o interesse pelo tema, ou problema, e, em 1983, Irene Guerreiro Galla publicou o livro Noite de Núpcias, havendo inclusive uma obra de 2008, da autoria de Marc Dannam, intitulado Saiba Tudo Sobre... A Noite de Núpcias, na avícola colecção Bico de Mocho da não menos avícola editora Bico de Pena, de Cascais. Não consegui saber muito sobre o Miguel Morphy que, além de ter feito um A Gata Borralheira, em 1900, e um Milagre de Amor, de 1950, assinou livro com o intrigante título Primeira Noite de Núpcias, em data desconhecida, mas fazendo crer, e muito bem, que, além da primeira, muitas noites nupciais haverá ou poderá haver, seja por força de recasamentos e reajuntamentos, seja por vontade e empenho de eternos nubentes sedentos.
De todos os livros sobre noite de núpcias existentes nas bibliotecas portuguesas, há um que se destaca, e muito, desde logo pelo subtítulo. Chama-se Noite de Núpcias: Estudos sobre a Virgindade e o seu autor chama-se Luiz G. Salazar, cá publicado pela Livraria Central de Gomes de Carvalho, a mesma que editou muitos dos livros de Alfredo Gallis, numa colecção com o fascinante nome "Biblioteca scientifico-sexual". Não se trata, portanto, de obra literária, antes científica, ou pseudocientífica, e o livrinho teve várias edições, a última das quais, imagine-se, em 1931, já em ditadura militar, nas vésperas do Estado Novo. Era grande, na verdade, o interesse por estas temáticas, que levou o espertalhão Alfredo Gallis a produzir dois livros de conselhos práticos, um para mulheres (O Que as Noivas Devem Saber!, de 1904), outro para homens (O Que os Noivos Não Devem Ignorar, de 1907), e que explicou o êxito das obras mais castas de Maria Amália Vaz de Carvalho ou do célebre A Vida Sexual, de Egas Moniz, a quem Pessoa apelidou, com acidez e graça, "o conselheiro Acácio da neurologia nacional". O livro do futuro Nobel foi um sucesso tremendo, com 15 edições e mais de 27 mil exemplares vendidos até 1927. Caso não o tenham lido, que merece, conto tão-só que Egas dedica várias páginas a analisar as consequências nefastas das bicicletas para a preservação da integridade do hímen das ciclistas, discutindo qual o tipo de selim mais perigoso para a virgindade feminina.
Pouco antes, o doutor Serras e Silva, que desempenharia um papel decisivo na socialização de gerações inteiras de jovens intelectuais católicos, como Salazar e Cerejeira, havia dado à estampa, nas páginas da revista Movimento Médico, editada em Coimbra, um artigo bastante cáustico sobre a prática do ciclismo: "os movimentos das coxas, o atrito da vulva, do clítoris sobre o bico da sela tem dado lugar a práticas viciosas que, não sendo bastante frequentes para condenar a bicicleta, bastam, contudo, para condenar o uso da sela que não satisfizer aos princípios estabelecidos pela higiene." Egas Moniz ia mais longe e desaconselhava de todo em todo o uso de bicicletas pelas mulheres e, em matéria de selins, considerava que os mais anti-higiénicos eram os alongados, mas também os de bico curto e arredondado. Um selim em condições, segundo Moniz, deveria satisfazer não menos do que cinco requisitos cumulativos, a saber: "1º - ter um assento suficientemente largo para os ísquios; 2º - não comprimir o períneo; 3º - permitir uma boa posição; 4º - dar um sentimento de segurança suficiente; 5º - ter o vértice da parte anterior do bico oito centímetros para diante do eixo transversal dos pedais." E, à semelhança de Egas, também Serras e Silva alertava para o perigo das máquinas de costura: "desde há muito que a masturbação feminina pelas máquinas de costura é conhecida; com a mulher mal sentada, friccionando durante horas sucessivas as coxas uma contra a outra, num movimento curto de pernas, que cria um estado de crispação enervante, com a atenção limitada, sem atractivos num atelier, está assim a pobre operária em óptimas condições de adquirir maus hábitos a que a higiene deficiente do meio de resto a convida." Egas contava aliás uma história passada em França em que, num atelier de costureirinhas, foram surpreender uma delas em espasmos e gritos, de olhos revirados, tudo por culpa de uma malvada Singer.
Razão tinha Michel Foucault quando disse, no primeiro volume da sua História da Sexualidade, que a scientia sexualis desenvolvida em finais do século XIX/princípios do XX tinha claras e insofismáveis semelhanças com a ars erotica dos autores libidinosos e porno, como Gallis e tantos outros. Médicos puritanos e escritores eróticos lidavam ambos com a mesma matéria-prima, a obsessiva preocupação com a virgindade feminina, associando-se a integridade do hímen, um traço puramente físico, carnal, a noções de integridade e rectidão moral e de sanidade mental (não por acaso, aquele também foi o tempo da "histerização das mulheres", nas palavras de Foucault, de "invenção" de uma doença feminina, o histerismo, que Freud se encarregaria de deslindar, mas que ainda hoje persiste como ferrete e estereótipo na caracterização misógina de muitas mulheres). O dogma da Imaculada Conceição, não o esqueçamos, só fora proclamado em 1854, por Pio XI, na Constituição Apostólica Ineffabillis Deus, e foi na Belle Époque que ocorreu a "erotização do casal burguês" (Alain Corbin), ou seja, que o casamento passou a ser entendido como sendo, ou devendo ser, um espaço de fruição erótica para marido e mulher. Isso provocou, naturalmente, uma enorme "ânsia de virilidade" entre os homens, apavorados por mil temores: o da "degenerescência da raça", exuberantemente mostrada no caso lusitano pelo Ultimato inglês; o da sífilis contraída com prostitutas; o das mulheres (literalmente) fatais, como a que vitimou o Presidente Félix Faure, morto no Eliseu, em pleno acto com uma demi-mondaine; o do adultério das suas esposas, agora sedentas de sexo; o da falta de vigor e potência, patente na proliferação de anúncios a remédios e unguentos milagrosos, os precursores do Viagra, quando não tratamentos com urtigas, choques eléctricos, etc. Nas representações masculinas da época, um outro terror à espreita: a competição desigual com negros chegados de África, homens endinheirados, com fortuna feita nas roças de São Tomé, e dotados de sexos mais avantajados do que os seus. Gallis tratará do tema em duas das suas obras, Sousa Bastos anotará o fenómeno em Lisboa Velha, as suas recordações da capital entre 1850 e 1910, Raul Brandão mostrar-se-á escandalizado, nas suas Memórias, pela atriz Ângela Pinto andar envolvida com "um preto que lhe pôs automóvel", enquanto em Vénus Geradora, de 1904, António Cabral escreveu que os negros "têm os órgãos sexuais mais desenvolvidos do que os dos brancos", na mesmíssima linha de Paulo Paolo Mantegazza, o antropólogo de Florença e autor de obras popularíssimas, como O Amor dos Homens (2ª ed., 1900), onde se lêem maravilhas como esta: "são ainda muito escassas as observações sobre a forma diversa e as várias dimensões dos órgãos genitais das diferentes raças, mas está demonstrado que os negros em geral têm o membro viril mais volumoso que os outros povos, e eu mesmo, exercendo medicina durante muitos anos na América meridional, pelos meus próprios olhos pude comprovar este facto. A este maior volume dos órgãos genitais do macho corresponde também uma maior amplidão da vagina das negras. Falkenstein reconheceu que os negros do Luango têm o pénis muito grosso e às suas mulheres não satisfaz o nosso amplexo, zombando ainda da nossa exiguidade. O mesmo autor combate a ideia singular de Topinard, de que o maior volume do pénis dos negros não se verifica senão no estrado de flacidez, e que se torna menor quando em erecção."
Noutra das suas obras, Higiene do Amor (que dedica várias páginas a analisar a envergadura do pénis de diversas raças caninas, citando os drs. Marjolin, Chipault e Betrand que obtiveram cães paralíticos através de cruzamentos incestuosos), Paolo Mantegazza conta que um jovem colega seu, médico e académico, motivado por razões puramente experimentais e clínicas, decidiu desflorar a mulher a bordo de um balão (a expressão "desflorar" é também sintomática), com a esposa a sujeitar-se a passar a noite ou o dia de núpcias perdida nas nuvens, vagueando pelos ares. «Esta membrana tem dado origem a grandes controvérsias», escreveu o dr. Luiz Salazar na sua Noite de Núpcias, acrescentando, logo a seguir, num registo médico-poético, que «nos povos civilizados dá-se grande importância à virgindade. O noivo faz da sua adorada a mais fagueira das ilusões e considera-a tão pura como a rosa em botão não tocada pelos insectos e tão casta como a primeira brisa da madrugada».
Alfredo Gallis iria subverter e gozar ("desconstruir", dir-se-ia hoje) com a obsessão masculina sobre a virgindade das mulheres em livros como Helena Lourenço, ou o Preço da Virgindade (em que a sabidona Helena reconstrói o hímen para enganar um rico capitalista), um dom que Egas Moniz só exigia às fêmeas, não aos machos. Quanto a estes, dizia Egas ser "contra o casamento virgem da parte do homem, acho-o inexequível"; anos depois, em 1918, e a pedido de Carneiro Pacheco, elaborou o parecer Do erro acerca da pessoa como causa da nulidade do casamento, em que considerou ser legítimo a um marido anular o casamento por ter descoberto que a mulher não era virgem e até já estava grávida de um terceiro, invocando a teoria da "hereditariedade por influência ou impregnação" e considerando que tal mulher "levara para o lar, como o produto de um amor incestuoso, o defeito físico irremediável da impregnação", ou seja, contaminara irremediavelmente e ad aeternum todo o seu património genético.
A tara dos homens com a integridade himenal das suas mulheres, fruto, no fundo, de uma enorme insegurança em relação a eles próprios, estará hoje desaparecida, ou pelo menos minorada pela maior liberdade de costumes, pelo aumento de respeito mútuo entre sexos (ou "géneros", no dizer de agora). Ainda assim, e há poucos anos, Miguel Vale de Almeida observou a persistência dessa obsessão nos jovens rapazes da comunidade rural alentejana que estudou no seu livro Senhores de Si. Uma interpretação antropológica da masculinidade (Lisboa, 2000). Hoje, talvez sem os contornos trágicos do passado, mas de uma forma não menos presente e insidiosa, o terror que as mulheres suscitam homens reveste-se de novas e abomináveis formas, agora decorrentes da maior presença feminina no mercado de trabalho e na esfera pública, até em posições de poder e mando.
Li há tempos o livro She Said - Breaking the sexual harassement story that helped ignite a movement (Penguin, 2019), com o qual as autoras, Jodi Kantor e Megan Twohey, jornalistas de investigação do The New York Times, arrecadaram o Prémio Pulitzer pela revelação dos hediondos e reiterados actos de Harvey Weinstein, um vendaval que espoletou o #MeToo. Não me pronuncio sobre o que agora se está falando a propósito de um centro de investigação na cidade do Mondego, dizendo tão-só que são impressionantes as semelhanças entre o que aquelas jornalistas descrevem, o avanço de uma investigação em ritmo de thriller policial, e os relatos que nos últimos dias têm enchido as páginas da nossa imprensa, sempre atrasada e tardia no levantar destes véus. Num caso e noutro, o mesmo script, sem tirar nem pôr: rumores sussurrados durante anos, em surdina cúmplice; a indiferença de muitos e a tolerância de outros tantos, inclusive mulheres, fosse por veneração ao mestre, fosse por puro oportunismo e abjecto carreirismo (nas descrições que têm surgido, o CES parece um culto ou seita com um líder patriarcal e tirânico, não um centro de investigação do século XXI); o aproveitamento do caso, uma vez deflagrado, pelos inimigos do predador; sobretudo e acima de tudo, a tragédia persistente das vítimas, primeiro alvo de vil assédio, depois de silenciamento, depois ainda de exposição ao ultraje público e às calúnias difamatórias do seu abusador. Destas parecenças entre Hollywood e Coimbra não se infere, claro está, a culpabilidade do "Professor Estrela" e do seu "Aprendiz", a qual só será provada, ou infirmada, através de competente, diligente e sobretudo independente investigação. Em todo e qualquer caso, impõe-se o respeito às vítimas, as quais, mesmo que em rigor o não sejam, coisa que só um inquérito irá apurar, mostraram já enorme coragem e audácia, uma ousadia tremenda. Noite de núpcias, noite de trevas - um passado que não quer passar?
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.