"Na brancura da cal o traço azul/Alentejo é a última utopia/Todas as aves partem para o sul/Todas as aves: como a poesia", escreve Manuel Alegre no livro Alentejo e Ninguém. Mas e se, ao contrário do movimento migratório das aves, a muitos alentejanos não restar senão deixar para trás essa brancura de cal e rumar a Norte, movidos por melhores condições de trabalho e estudo? Essa é a resposta (ou parte dela) que a Casa do Alentejo em Lisboa procura dar vai para 100 anos..A efeméride celebra-se a 10 de Junho, Dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas, mas esta quinta-feira, 26, a quase centenária instituição apresentará ao público um vasto programa de comemorações com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa (cujo presidente, Carlos Moedas é natural de Beja) e o alto patrocínio do Presidente da República, que, não tendo "costela" alentejana, admite nutrir um carinho muito especial pela Casa do Alentejo que, em criança, frequentava com o pai, Baltazar Rebelo de Sousa..Com o mote comum "Por Amor ao Alentejo", o programa terá um vasto leque de iniciativas culturais, que incluirá o lançamento do livro do centenário, a inauguração de uma escultura da autoria do artista alentejano Jorge Pé Curto no icónico Páteo Árabe da sede, na Rua das Portas de Santo Antão, numerosas exposições de fotografia e pintura, que prometem revisitar a presença e a influência alentejana na região de Lisboa durante os últimos 100 anos. Isto sem esquecer a música, em particular o cante, património imaterial da Humanidade desde 2014, bem como a gastronomia e a riqueza desta região vinícola. Está, ainda, prevista uma sessão solene para o próximo 10 de junho, data em que, como vimos, se assinala formalmente a fundação da Casa do Alentejo. A Comissão de Honra do centenário é composta por cerca de 100 personalidades e entidades, em que figuram, para além dos autarcas dos diversos municípios do Alentejo, nomes como o presidente da Associação 25 de Abril, Vasco Lourenço, os artistas Maria João Luís, Vitorino e Janita Salomé ou o Comendador Rui Nabeiro..Com esta comemoração, a Casa do Alentejo procura deixar para trás os tempos difíceis dos confinamentos ditados pela pandemia, como salienta ao DN o atual presidente, João Proença: "É grande a importância deste gesto comemorativo, não só como merecida homenagem ao papel fundamental que a Casa do Alentejo tem desempenhado ao longo destes 100 anos na região da Grande Lisboa, mas como ato de afirmação e expressão de força do que continuará a constituir para o futuro da cidade, como uma embaixada da região alentejana em todas as suas vertentes, enquanto pólo cultural, social, económico, gastronómico e associativista.".Entre os objetivos das comemorações, para além de festejar o trabalho desempenhado, está a necessidade de angariar novos sócios. Neste momento são cerca de 1000, mas, em épocas de maior força associativa, como a década de 1980, já foram o triplo. O principal requisito para ser admitido é a naturalidade ou a ascendência alentejana, ou, no caso dos sócios assistentes, uma relação profunda com a região..Tudo começou no princípio do século XX , quando o espírito associativo da época se juntou às necessidades sociais criadas pela industrialização do país. A ideia de criar uma Liga que reunisse a "colónia alentejana em Lisboa" remonta, pois, a 1912. Assim surgiu a Liga, embora muito inspirada em Coimbra, pelos jovens estudantes que, vindos do Sul, acorriam à Universidade. A estes somar-se-iam os operários de Lisboa ou da margem sul do Tejo, como escreve Daniel Melo no seu livro Um Povo, uma cultura, uma região: A História Exemplar da Casa do Alentejo: "Assim surgiu despoletada pelo alarme face às greves contra a fome, o desemprego, aos baixos salários e às más condições de vida dos alentejanos residindo não só na capital como no Alentejo e dos que recentemente haviam partido para as Caraíbas (ilhas Sandwich) e EUA (Califórnia).".Este tipo de preocupação entroncava nos objetivos de regeneração social próprios do ambiente que conduziu à implantação da República: "Embora pioneira para a região, não o era para o país: o associativismo regionalista em Portugal surgira no estertor da monarquia constitucional, com o Club Transmontano (fundado em 1905) e o Grémio da Madeira (de 1907). Estas associações, criadas para a proteção de comunidades sub-étnicas em busca de integração social, irrompem num contexto de afirmação regional e segundo uma delimitação histórica provincial. Era evidente a inspiração republicana, sobretudo graças à sua postura pró-descentralização administrativa, a qual, porém, redundaria numa oratória de belo efeito mas de fracas consequências práticas.".Este grémio alentejano (designado Casa a partir de 1939, por força da legislação que reservava esta designação para organismos de carácter económico) passou por Alcântara (onde então se concentrava grande parte da população operária de Lisboa), pelo Bairro Alto e, finalmente, em 1932, instalou-se no Palácio Alverca, situado na Rua das Portas de Santo Antão. Ainda estavam quentes as mesas de jogo e as memórias do Majestic Club, onde a boémia de Lisboa seduzia e dançava o foxtrot à boa maneira dos loucos anos de 1920..Com a chegada da Casa do Alentejo não deixou de se jogar às cartas, mas, como notam João Proença e Manuel Verdugo, respetivamente presidente e vice-presidente, o perfil da casa mudou: "Como todas as casas regionais, também esta era constituída com o propósito de acolher os naturais para arranjar emprego e se integrarem na cidade. Em geral eram pessoas que vinham de um meio rural e chegavam aqui um bocado perdidas. Divertiam-se, matavam saudades da sua cultura, arranjavam namoro, estudavam. E dançavam, fazíamos muitos bailes." Mas também havia barbeiro e médico - um dos presidentes mais carismáticos da Casa do Alentejo foi o Dr. Ramon de La Féria, médico, cujo consultório é mantido intacto no Palácio da Rua das Portas do Santo Antão..Mas se, como nota João Proença, durante o salazarismo o perfil dos sócios era vigiado pelas autoridades políticas, a seguir ao 25 de Abril deu-se o boom. Graças a ele, a Associação pode, finalmente, adquirir o imóvel em que está desde 1932. A partir daí, uma maior facilidade de transportes e o reforço do poder local tornaram a Casa do Alentejo um centro aglutinador e expositivo da cultura alentejana: "Hoje é com muito maior facilidade que as pessoas vêm aqui mostrar os seus produtos de artesanato, os queijos, os vinhos, mel. Ou mesmo divulgar as suas iniciativas e manifestações culturais como o cante, folclore ou as bandas." Mas João Proença sublinha: "Por muito dinamismo que tenhamos, não é com as quotas dos sócios que nos podemos manter. Temos muitas despesas de manutenção e contamos com 38 funcionários"..Com efeito, a principal fonte de receitas é a restauração, já que, neste momento, a Casa do Alentejo tem três espaços de excelência: uma loja com esplanada, para degustação de vinhos e cervejas artesanais, um bar de tapas no rés-do-chão e o restaurante propriamente dito no primeiro andar. É aí que, sob o monumental painel de azulejos de Jorge Colaço representando a vida rural de outras épocas, o cliente pode entregar-se ao prazer de saborear umas boas migas, uma sopa de cação ou um arroz de borrego. Se tiver sorte, é bem possível que ouça os ensaios de dois cantores líricos que costumam ensaiar num dos numerosos salões desta casa..Sem pressas, como manda a cultura alentejana..dnot@dn.pt