Um mês antes de participar nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912, o atleta Francisco Lázaro, de 24 anos, venceu uma maratona com final na Calçada da Carriche, em Lisboa, com o tempo de duas horas, 52 minutos e oito segundos, deixando o seu perseguidor mais direto a 15 minutos de distância. Nada de especial para quem estava habituado desde a juventude a ganhar corridas ao elétrico do Chora, quando se deslocava de casa (Benfica) para o trabalho (Bairro Alto). Uma marca absolutamente incrível para a época, que motivou grandes esperanças de que o atleta pudesse trazer uma medalha na primeira participação de Portugal em Jogos Olímpicos (só para se ter um noção, quatro anos antes, em Londres, o vencedor da maratona olímpica fez duas horas e 55 minutos). Além de Lázaro, a comitiva portuguesa nos Jogos de Estocolmo 1912 era composta pelos atletas António Stromp e Armando Cortesão, pelos lutadores António Pereira e Joaquim Vital e ainda o esgrimista Fernando Correia. Naquele dia 11 de julho de 1912, Francisco Lázaro, carpinteiro numa fábrica de carroçarias de automóveis, no Bairro Alto, que vinha a destacar-se com bons tempos em provas internas de longa distância, entrou na pista ao lado de outros 67 atletas para dar início à maratona olímpica, num dia em que as temperaturas marcavam 32 graus à sombra. Mas desfaleceu ao quilómetro 29, depois de vários tombos, na colina de Öfver-Järva, numa altura em que seguia num grupo a pouco tempo do primeiro classificado.. Morreu nessa mesma madrugada, ele que horas antes havia afirmado à imprensa que o calor não o incomodava - "até folgo que o haja, porque fará afastar alguns concorrentes". E que quando se despediu da família em Lisboa, com a mulher, Sofia, grávida de cinco meses, soltou a célebre frase antes de entrar no navio que iria levá-lo até Estocolmo: "Ou ganho ou morro." A história de Francisco Lázaro e as verdadeiras razões da sua morte motivaram estudos e vários livros, uma série japonesa - Idaten: Tokyo Olympics Story - e até um romance de José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, de 2006, cujo tema central é a transcendência. Como escreveu José Luís Peixoto, num artigo para a revista Visão História, em 2012, a história do atleta português evoca até uma "sobreposição ao mito de Fidípídes, fundador da própria maratona", um soldado ateniense que em 490 a.C. correu mais de 200 quilómetros em dois dias antes da batalha de Maratona, na tentativa de pedir ajuda a Esparta. E que após a vitória teria feito sempre a correr a distância de 42 quilómetros entre Maratona e Atenas para anunciar o triunfo sobre os persas. Quando chegou à capital grega só teve tempo de gritar vitória e morreu devido ao cansaço..Livros, teses, séries e explicações.A autópsia realizada a Francisco Lázaro apontou a desidratação e insolação como causas da morte, depois de alegadamente se ter besuntado com sebo pelo corpo antes da corrida e de ter sido um dos poucos participantes na prova com a cabeça descoberta. Dizem os relatos da altura que o atleta Armando Cortesão e o lutador Joaquim Vital, que faziam parte da comitiva portuguesa, o encontraram minutos antes da prova no balneário a untar o corpo com sebo - naquela época, a emborcação, fomentação com um líquido oleoso na parte enferma de um corpo, era prática comum entre os atletas de pedestrianismo e de ciclismo..Gustavo Pires, professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e autor do livro Francisco Lázaro, o Homem da Maratona, tem outra versão para os factos. "A justificação politicamente correta dizia que Lázaro morreu porque se ensebou e foi vítima de um golpe de sol. Que ele se ensebou foi confirmado, em primeira mão, por Armando Cortesão, que, enquanto atleta, fez parte da missão portuguesa aos Jogos Olímpicos de Estocolmo (1912), ao jornalista Romeu Correia. Todavia, sabe-se que, ao tempo, os atletas ensebavam as articulações, sobretudo as tibiotársicas, a fim de as proteger das diferenças de temperatura. Fazia parte de um ritual. O sebo tem um cheiro nauseabundo e ao sol é insuportável. Por isso, não me quer parecer que Lázaro tenha ensebado mais do que as articulações", argumentou ao DN.. "Quanto à insolação, o relatório dos JO de Estocolmo confirma o golpe de insolação e é tudo. Todavia, a minha tese é a de que a morte de Lázaro só aconteceu porque a insolação foi potenciada pela emborcação de estricnina. O discurso oficial, politicamente correto, foi o de que - o rapaz era humilde, mal falava português, não sabia comer de garfo e faca, ensebou-se e, porque era teimoso, não cobriu a cabeça e acabou por pagar com a vida tal ousadia. Contudo, os jornais da época, entre outras hipóteses, tais como colapso cardíaco, meningite e, até, problemas intestinais, não deixaram de, também, considerar a estricnina. As descrições das últimas horas de vida de Lázaro desde que desfaleceu na prova da maratona apresentam na sintomatologia a utilização exagerada da estricnina, que, certamente, já vinha de há longo tempo. Ele morreu de insolação, mas de uma insolação potenciada pela estricnina. O seu corpo produziu calor para além daquilo que podia aguentar e entrou em colapso. Por isso, a primeira causa da morte de Lázaro foi a estricnina", acrescentou. No livro A Morte de Francisco Lázaro, datado de 1985, da autoria do professor Pedro Nolasco, o autor recorda que, quando frequentou em Estocolmo o curso de Ginástica Médica e de Recuperação, teve como professor um dos médicos que realizaram a autópsia a Francisco Lázaro: "Esclareceu-me então o professor doutor F. Henchen que, estando de serviço na altura, lhe competira efetuar a autópsia do atleta, tendo encontrado o fígado completamente mirrado, do tamanho de um punho fechado e rijo, a tal ponto que só se conseguira partir a escopro, como se fosse uma pedra." "Ora bem, a estricnina é metabolizada no fígado. Por isso, a tese do sebo nunca me convenceu", remata Gustavo Gomes. O professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana interessou-se por este tema por várias razões. "Uma das que mais me tocaram foi, ao tempo, a do miserabilismo da cultura desportiva nacional que ainda hoje prevalece. Por isso, Francisco Lázaro continua a representar a cultura de mediocridade que leva os poderes instituídos públicos e privados a tratarem os atletas como carne para canhão e o desporto como simples instrumento de poder e de manipulação de massas", apontou, lembrando que em 1912 o governo da República "deixou partir a missão olímpica portuguesa para a Suécia completamente desamparada". Sebo, emborcação, insolação ou doping, certo é que Francisco Lázaro "veio a transformar-se numa verdadeira lenda olímpica (...) e será sempre um exemplo a reter e a nunca deixar cair no esquecimento", como escreveu Alexandre Mestre, ex-secretário de Estado do Desporto e da Juventude e jurista, no livro Ou Ganho ou Morro..Porque a maratona tem 42 quilómetros e 195 metros?.A maratona surgiu pela primeira vez nos Jogos Olímpicos de 1896, como forma de homenagear Fidípides, um soldado grego que em 490 a.C. teve como missão correr da cidade de Maratona até Atenas (cerca de 40 quilómetros) para anunciar a boa-nova da vitória dos gregos sobre os persas numa batalha. Inicialmente, a prova teve sempre aproximadamente 40 quilómetros. Mas a partir dos Jogos Olímpicos de 1948 foram-lhe acrescentados mais dois quilómetros e 195 metros, distância que ficou até aos dias de hoje. A ideia surgiu nos Jogos Olímpicos de Londres para que a prova pudesse ser vista pela família real inglesa. E por isso o percurso teve início no jardim do Palácio de Windsor com final no Estádio Olímpico de White City. Uma medida que agradou a todos - os reis queriam mostrar aos descendentes a valentia dos atletas e os organizadores o Castelo de Windsor no postal da sua prova principal.