Foi o escritor de viagens Bruce Chatwin quem escreveu, no livro Canto Nómada: "Proust, com mais perspicácia do que qualquer outro escritor, lembra-nos que os "passeios" da infância constituem a matéria-prima da nossa inteligência." É uma frase que apetece citar a propósito de As Oito Montanhas, este um filme em sintonia com a ideia de que os passeios ou caminhadas (uma que seja), não apenas simbólicas mas concretas, feitas enquanto ainda somos crianças, moldam algo da nossa mentalidade adulta. Pelo menos é isso que sucede com Pietro e Bruno, dois rapazes de realidades muito diferentes, ambos com o espírito aguçado pela paisagem dos Alpes italianos, que neste filme estarão sempre sob influência das montanhas na sua distinta abordagem da vida. E, sim, tudo vai remeter para uma caminhada especial. Aquela que fizeram juntos com o pai de Pietro e que selou o próprio vínculo de Bruno, o jovem montanhês, com essa espécie de figura paternal - uma memória de infância que acaba por se refletir plenamente nos dois amigos adultos..Vencedor do Prémio do Júri no Festival de Cannes (ex aequo com Eo, de Jerzy Skolimowski), As Oito Montanhas é uma adaptação do livro homónimo de Paolo Cognetti, um best-seller que por vezes dá a sensação de estar demasiado presente na voz off do narrador (a personagem de Pietro). Enfim, não tão presente a ponto de se sentir uma bengala literária, mas o suficiente para sinalizar a busca por uma dimensão épica, evidente nas breves passagens de texto que traçam a linha intimista do filme, inscrita na ampla e serena visão montanhosa..A história de Pietro e Bruno começa no Verão de 1984, quando o primeiro, um menino vindo de Turim que passa férias com a mãe numa aldeia dos Alpes italianos, conhece o segundo, um rapaz da mesma idade que será "a última criança" dessa mesma aldeia. A amizade entre eles cresce ao sabor da liberdade dos dias soalheiros passados a subir montes e muros de casas abandonadas ou a mergulhar em lagos cristalinos. Basta um verão seguido de outro para se reforçar a amizade, e quando o pai de Pietro se junta à família em férias, trocando a fábrica onde trabalha por caminhadas nas montanhas, uma outra faceta desse homem citadino e pouco amistoso se revela em altitude... Estamos a falar do homem que leva o filho e o amigo deste na dita caminhada memorável, com esse miúdo rústico, Bruno, a mostrar-se no seu elemento, resistindo melhor às alturas do que o frágil Pietro, e de alguma forma assemelhando-se em ambição ao pai do amigo. Bruno que é filho de pai ausente....Não deixa de ser curioso que, até certo ponto, Le Otto Montagne nos recorde Luca, a animação da Disney sobre a amizade de verão entre dois rapazes com personalidades diferentes, mas levados pelo mesmo espírito de aventura sugerido pela paisagem à sua volta; naquele caso, uma pequena cidade da Riviera italiana. Porém o filme da dupla belga Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch não se fica pela doçura estival. Dá saltos no tempo para levar o espectador na impressão cumulativa das fases da vida que a amizade de Pietro e Bruno (em adultos, interpretados por Luca Marinelli e Alessandro Borghi) vai cobrir, sempre vigiada pelas montanhas..Duas décadas acabam por separar as memórias de infância do reencontro destes amigos, agora barbudos e unidos na construção de uma cabana de pedra no meio de um vale. A partir daí, o movimento exterior e interior das personagens reflete nada mais, nada menos do que a caminhada que partilharam muitos anos antes: Bruno continua a ser o rapaz resistente da montanha, que não se revê na abstração da palavra "natureza", qual invenção urbana, enquanto Pietro, que ganhou o gosto pela caminhada através do pai, vagueia sem pressa por outras montanhas até descobrir no Nepal uma qualquer definição identitária..Felix van Groeningen, cujo filme anterior, Beautiful Boy (2018), protagonizado por Timothée Chalamet, abordava a toxicodependência no seu quadro mais realista e pessimista, tentou algo desafogado e lírico nesta corealização com a companheira Charlotte Vandermeersch. E, de facto, pode dizer-se que o que salva As Oito Montanhas de um sentimentalismo pesadão é a subtileza com que a relação de Pietro e Bruno vai desenhando a sua tristeza vaga nas grandes vistas, sem fazer escalar cenas dramáticas. Na verdade, nem são precisas muitas palavras para sustentar aqui o que é invisível aos olhos..Isto não significa que estamos perante um filme "silencioso", já que as canções do compositor sueco Daniel Norgren sublinham (e bem) o lado emocional e contemplativo da realização, mas há uma suavidade intrínseca que mantém o encanto do todo, para lá da tal dimensão épica almejada. Nesse sentido, não é um filme-montanha, porque lhe falta a densidade própria dos acontecimentos marcantes e concretos das grandes histórias, mas na sua tentativa de alcançar essa configuração, descobrimos a beleza do ensaio: um olhar que não se limita à distinção entre o rapaz do monte e o rapaz da cidade, ligados pela filosofia secreta da paisagem, mas que tece na sua química delicada uma melancolia pronta a ecoar infinitamente..dnot@dn.pt