A memória do Sudoeste pelas pessoas que o fazem

Ajudaram no parto e acompanharam o crescimento de um festival que também consideram um pouco seu. Vinte anos depois, ainda são vários os membros da equipa original que aqui continuam a trabalhar.
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Mal imaginava Carlos Francisco que um plano para ganhar um dinheiro extra, nesse verão de 1997, haveria por lhe mudar por completo a vida. Natural da região centro do país, estava em Albufeira a vender cachorros num carrinho quando leu no jornal Blitz que ia haver um festival de Música na Zambujeira do Mar. Fez-se à estrada com um empregado e o carrinho e alimentou muitos dos festivaleiros de então com uns tais "cachorros psicológicos" que acabariam por também fazer parte da história do Sudoeste. "Pus-me do lado de fora, à socapa, sem dizer nada a ninguém. Esgotei tudo no primeiro dia. O meu colega dormia numa tenda, com o material e eu ia todos os dias ao Algarve comprar pão", lembra. No ano seguinte regressou com roulote e começou a construir um pequeno império que hoje se multiplica por "quase todos os grandes festivais, queimas das fitas e concentrações motards do país". Hoje, é também o responsável pela esplanada da zona do campismo, e pelo catering que alimenta as centenas de pessoas que trabalham diariamente no Sudoeste. "Devo muito a este festival".

Em 20 anos de Sudoeste já foram muitas as gerações de jornalistas que lhe passaram pela frente. Literalmente, pode-se mesmo acrescentar, pois é a ela que lhe cabe a função de receber os profissionais da comunicação social, à entrada do recinto. Fiel à fama do seu lendário mau feitio (que apenas serve para disfarçar um enorme coração de manteiga), Inha Castaño, 61 anos, começa por recusar qualquer entrevista, depois torce o nariz às fotos, mas lá acaba por conceder o privilégio de nos contar algumas das suas memórias de duas décadas de Sudoeste. "Hoje em dia o festival é outro mundo, especialmente ao nível do conforto. Na altura fez-se o que se pôde e até acabou por correr muito bem", recorda. Na altura, Inha fazia também a promoção do festival e chegou dois dias antes com o sócio, Paulo Bismark, para começar a preparar o trabalho, mas as dificuldades começaram logo em arranjar um local para dormir. "Só conseguimos já perto da meia-noite, numa casa particular perto da praia da Amália, no Brejão. Os donos da casa foram dormir para a cozinha e nós ficámos com os quartos", conta, recordando em seguida que "os fotógrafos dos diários enviavam os rolos pelo Expresso para Lisboa". Sobre as mudanças do festival, considera-as apenas isso, mudanças - "Não é melhor nem pior, é diferente". Mas, quando convidada a escolher as melhores edições, não hesita: "a primeira, pelo milagre que foi e a segunda, no ano dos Portishead e da PJ Harvey. As filas para as bilheteiras eram tantas que quase tivemos de fechar".

Ninguém conhece melhor este festival que João Paulo Montez, 51 anos e responsável pelo recinto desde a primeira edição. O irmão de Luís Montez, da Música no Coração, é uma espécie de faz tudo e de pronto socorro do Sudoeste, como se percebeu durante a entrevista com o DN, várias vezes interrompida por diversos telefonemas sobre os mais variados assuntos. Este ano, "devido a várias alterações" no recinto, foi obrigado a vir mais cedo, mas normalmente chega duas semanas antes e fica outras duas depois de terminado o festival. "Há sempre o objetivo de melhorar a cada ano, mas se pensarmos que na primeira edição nem água havia, isto hoje é um hotel de cinco estrelas. Mesmo assim ainda conseguimos improvisar 10 chuveiros. Quando o último era ligado o primeiro deixava de funcionar", lembra com uma gargalhada João Paulo, reconhecendo que o maior desafio foi mesmo esse primeiro ano. "Deus deve ter olhado cá para baixo, pensou que nós éramos bons rapazes e não deixou nada de mau acontecer". Entretanto, tornou-se já quase um filho da terra. Foi ele que convenceu o irmão a convidar alguns grupos de cantares alentejanos da região, para animarem o recinto durante o dia. E que convidou as gentes de São Teotónio a decorarem a zona da restauração com as tradicionais flores e balões de papel das festas da terra. "Este é o meu festival, venho para cá muitas vezes durante o ano, já conheço toda a gente. Criei laços muito fortes". Mas nem sempre foi assim: "No primeiro ano desconfiaram de nós, tinha de ir comprar os materiais ao Algarve, que aqui ninguém me vendia nada". Mas não foi só isso que mudou, a idade dos festivaleiros também baixou "e bastante", desde então. "Temos uma maior responsabilidade por serem menores, claro. Este é um festival sem pai nem mãe e a por isso a segurança e o conforto têm de ser a nossa prioridade. Há 20 anos, quando cheguei, até borregos mortos aqui havia, hoje isto é um campo relvado".

Quem acompanhou bem de perto todas as evoluções no que à segurança diz respeito foi Luís Oliveira, 42 anos. O atual Comandante dos Bombeiros Voluntários de Odemira também esteva na famosa primeira edição e já como bombeiro. "Lembro-me especialmente da excentricidade do Marilyn Manson, tanto no palco como fora dele", brinca. O que mais o orgulha "é nunca ter havido qualquer ocorrência de incêndio em 20 anos de festival". Mas como é melhor prevenir que remediar, tem cinco elementos em permanência no recinto, acompanhados duas viaturas de combate a incêndio e uma ambulância. "Preocupam-me mais as pessoas na estrada, depois dos concertos, ou os grandes aglomerados nas praias durante a tarde, que propriamente o campismo, onde normalmente só somos chamados para ajudar a montar camping gás". Todos os anos há histórias que ficam na memória, garante o comandante, para quem "o momento mais marcante foi, sem dúvida o nascimento de uma criança, em 2000, na ambulância, a caminho do hospital".

Quem também é um veterano do Sudoeste é Valas, o rapper de Évora a quem ontem coube abrir o terceiro dia de concertos, no Palco LG. "Desde os 14 anos que venho ao festival e sempre ambicionei algo assim, mas de uma forma bastante ingénua, pelo que é muito simbólico atuar aqui", confessou o artista de 27 anos, momentos antes de entrar em palco, longe de imaginar que iria conseguir uma das maiores enchentes destes espetáculos de fim de tarde. Quem sabe se um dia não chega também ao palco principal, onde cerca de uma hora depois a animada mistura de folk e eletrónica dos britânicos Crystal Fighters deu o mote para um dos alinhamentos mais fortes da presente edição, que incluía ainda a cantora pop britânica de origem albanesa Dua Lipa, o rapper americano Lil Wayne e o dj holandês Martin Garrix.

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