"A meditação não é uma forma de escape"

Yongey Mingyur Rinpoche, que respondeu a perguntas do DN, está hoje e amanhã em Lisboa para três conferências sobre meditação.
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Mestre de meditação do budismo tibetano, nascido em 1975 nos Himalaias, Mingyur Rinpoche é autor do bestseller 'A Alegria de Viver - Revelar o Segredo e a Ciência da Felicidade" e conselheiro do Mind and Life Institute.

Este instituto foi cofundado em 1987 pelo neurocientista chileno Francisco Varela, para promover o diálogo entre a ciência e o budismo.

Na era da tecnologia e da vida toda nos telemóveis, Mingyur Rinpoche considera, em entrevista ao DN por e-mail, que é bastante difícil transformar hábitos adquiridos. Difícil mas não impossível.

Yongey Mingyur Rinpoche vai estar em Lisboa em julho. Uma das suas conferências é intitulada A Essência da Meditação. Porque é que a meditação é importante na nossa vida?

Aquilo que mais valorizamos na nossa vida é o bem-estar, a felicidade, a satisfação, a alegria, e é isso que naturalmente buscamos. E como se desenvolve a sensação de bem-estar, a alegria? Não é através de coisas materiais ou de circunstâncias externas mas sim através do desenvolvimento interior. Há muitas pessoas que acreditam que é possível obter algum grau de felicidade a partir das circunstâncias externas ou de coisas materiais. Quando não têm algo pensam, "se eu conseguir obter isto, serei realmente feliz!" E depois de alcançar o objetivo e a experiência pretendida "oh, não era bem isto que eu estava à espera, deve haver algo mais..." E, deste modo, gera-se um ciclo vicioso. A verdadeira felicidade, por outro lado, vem de dentro, de trabalhar com a própria mente. Não é possível encontrá-la de outro modo. E como se trabalha então a mente? Através da técnica de meditação. Não é possível alcançar uma verdadeira felicidade, alegria, pensando simplesmente, "Preciso de ser feliz, preciso de estar bem-disposto!" Não só não funciona como pode inclusive criar mais stress e mais infelicidade. Se quiser libertar-se de stress, de ansiedade, de experiências desagradáveis pensando apenas, "não quero estar preocupado, não quero estar irritado", isso não vai propriamente funcionar. Existe um método secreto e este método é praticado há mais de 2500 anos e tem vindo a evoluir ao longo de muitas e muitas gerações, e é sobre como trabalhar com a mente e de como isso é realmente benéfico na vida quotidiana.

Como explica o crescente interesse na meditação e no yoga no chamado mundo ocidental? As pessoas estão a perceber que a sua programação cultural e social não contém as respostas que procuram?

Penso que as pessoas estão à procura de resposta, à procura de dar um sentido à própria vida. Mas a verdadeira resposta não surge das circunstâncias exteriores. É preciso, a mente precisa de olhar para dentro. Por exemplo, quando eu era mais novo tinha ataques de pânico. Não era feliz, tinha aquele medo dentro de mim e tentava encontrar soluções. Na altura tinha oito, nove anos. Como estava na minha terra natal, tentava esquecer os meus pânicos a brincar com os meus amigos, fazíamos castelos de lama, brincávamos com arco e flecha, caminhávamos pela montanha à procura de cogumelos e vegetais. Tentava esquecer o meu pânico mas não funcionava! Tentava fazer coisas interessantes, fazer aquilo que queria... mas o pânico seguia-me. Onde quer que fosse o pânico seguia-me! Se ia para o topo da montanha, lá estava ele. Tínhamos um rio que descia até ao vale. Quando ia lá para o fundo do vale, lá estava o pânico também. Ia para dentro de cavernas e lá havia também pânico. Onde quer que fosse não conseguia fugir. A certa altura acabei por pedir ao meu pai que me ensinasse a meditar. E foi então que o meu pai me disse, "não lutes com o pânico, aceita-o e enfrenta-o!" E foi assim que aprendi técnicas de meditação, para enfrentar o meu pânico, aceitá-lo, e observá-lo até ele se tornar meu amigo e meu professor. E penso que é assim que são as respostas principais. A verdadeira resposta está dentro de cada um. E para obter essa resposta é preciso explorar a própria mente e através desse processo chega-se até à resposta.

Entre 2011 e 2015 desapareceu e andou num retiro errante durante esses quatro anos. Porque sentiu essa necessidade e o que aprendeu com essa experiência?

Desde os tempos da minha infância que desejava fazer um retiro errante. Tinha o sonho de andar pelas montanhas, de vale em vale, sem me fixar numa casa em particular, sem preocupações de dinheiro ou de pertences. Isto porque quando eu era pequeno, antes de me deitar, a minha mãe costumava ler-me a história de Milarepa. Milarepa é um iogue tibetano bastante afamado - o praticante de meditação - que viveu a sua vida tal como um retiro errante. Eu, a minha mãe e a minha avó, costumávamos estar juntos, à volta de uma fogueira, no Nepal, nas montanhas dos Himalaias, a minha terra natal. Juntávamo-nos em torno da fogueira e a minha mãe costumava ler a história de vida do Milarepa. E quando ouvia esta história sentia-me muito feliz! Mais tarde, quando tinha 13 anos, fiz o retiro tradicional de 3 anos, onde se fica num mesmo sítio durante 3 anos, com as circunstâncias certas de um retiro, onde há bastante tranquilidade. Éramos um grupo de 15, tínhamos um professor, tínhamos amigos praticantes de meditação, e apoiávamo-nos uns aos outros. Habitualmente dizemos que quando se quer desenvolver a meditação é necessário em primeiro lugar as circunstâncias certas, um retiro mais isolado, com professores e amigos. Posteriormente pode fazer-se um retiro sozinhos, onde é importante incluir diferentes circunstâncias e desafios, todo esse tipo de coisas. Portanto num retiro errante deixa-se tudo de lado, pronto para enfrentar diferentes desafios. Ir para sítios diferentes, ambientes diferentes, climas diferentes, circunstâncias diferentes, tantas coisas. O que aprendi neste retiro... No começo foi muito difícil. Sentia-me muito envergonhado, nunca tinha andado pelas ruas daquela forma em toda a minha vida. Mas na verdade dei-me conta que era um dos melhores momentos da minha vida. Aprendi duas coisas muito importantes. Naturalmente que o objetivo principal do retiro errante era desenvolver a minha mediação. Ainda que tivesse tentado aprender sobre meditação antes, ainda tenho muitas camadas de apego, fixações... Então deixava ir, deixava ir; é como descascar uma cebola. É realmente interessante passar por este processo. A segunda coisa é que aprendi muito sobre a vida. Cresci no seio de uma boa família, depois fui para o mosteiro e nunca saí da minha zona de conforto, do meu círculo de conforto. E quando parti para este retiro tive que começar tudo do zero. Tive de aprender a fazer fogo, a cozinhar, a mendigar, a sobreviver, tantas coisas. E tudo isto é realmente muito benéfico para a minha vida.

Contou que, durante esse tempo, teve uma experiência de quase morte. O que diria a pessoas que já tiveram experiências desse tipo? Porque razão têm uma segunda oportunidade?

No primeiro mês do meu retiro errante quase que perdi a vida. Não tinha muita experiência em andar pelas ruas, acabei por comer a comida errada e durante quatro dias tive diarreia. Ao quinto dia o meu corpo tornou-se completamente disfuncional e acabou por ficar paralisado. Nós temos um ensinamento sobre a meditação a aplicar no momento da morte, por isso já tinha aprendido sobre como é o processo de morrer e todas essas coisas mas nunca tinha tido a experiência real. E nesse momento tive uma experiência real. A minha mente estava a tornar-se cada vez mais clara, ainda que estivesse a perder a visão, não conseguia ver, não conseguia ouvir, não conseguia cheirar, o meu corpo estava paralisado mas a minha a mente estava cada vez mais clara, mais aberta, sem estes conceitos. Normalmente temos a voz, a imagem, e tudo isso desaparece, e há quase que um conhecer sem pensar. A mente estava tão presente, tão vívida, tão livre, tão vasta, para além dos conceitos. Estive neste estado algumas horas, talvez 8, 9 horas e depois voltei. Durante este processo aprendi muito sobre o deixar ir. No quarto dia sentia muito medo, "Devo deixar-me ficar assim, o que devo fazer?" Acabei por me deixar simplesmente estar. E depois, quando voltei sentia muita gratidão e apreço. Antes, quando estava na rua sentia que não pertencia ali, sentia-me muito envergonhado, tudo estava sujo. Mas quando retornei dessa experiência, a rua tornou-se como a minha casa. As árvores tornaram-se diferentes e até as folhas estavam brilhantes, vivas. E a parede, a parede partida atrás de mim tornou-se tão agradável. Para alguém que está a passar por este tipo de experiência, costumo dizer que estes momentos são muito preciosos. Porque normalmente temos as nossas zonas de conforto, ir para além disso é muito difícil. Temos todas as nossas crenças, todas as nossas tendências habituais e vivemos num casulo. E quebrar isso, enfrentar esse desafio, gera, no início, muito medo e insegurança. Mas depois, ao passar por isso, pode realmente haver desenvolvimento, crescimento, pode haver uma expansão muito maior do que se estava à espera. Costumo dizer que quem tem essas oportunidades é ótimo, mas depois costumam perguntar-me se para ter esse tipo de experiências é preciso estar quase a morrer. Não é preciso morrer! Nas nossas vidas temos muitas pequenas mortes. Por vezes as crianças quando são pequenas têm de deixar as suas famílias, os jovens quando têm cerca de 18 anos costumam sair de casa dos pais. E isso é o mesmo que ser errante. Estes jovens têm de fazer tudo, têm de procurar trabalho, têm de procurar casa, têm que ganhar a vida, é como um retiro errante. E quando se perde um emprego também é uma boa oportunidade, quando se termina um relacionamento, outra grande oportunidade! Quando existe qualquer tipo de dificuldade, todos esses momentos da nossa vida são uma grande oportunidade para ver essa brecha, essa abertura. Por vezes isto é designado de "bardo", que significa "entre". Este tipo de "momentos-entre" são muito raros e se pudermos utilizar essas oportunidades para realmente ver o potencial ilimitado de nossa mente, o nosso potencial e crescermos, acho que isso é realmente importante.

Por todo o lado, do Facebook ao Instagram, vemos tantos retiros, viajantes, etc... Não existe o risco de a meditação, o yoga, o mindfulness, os retiros, tudo isso se tornar um negócio?

Pode ser tornarem-se realmente materialistas. Um dia estava a ver uma revista que tinha escrito, "pratique esta meditação e alcance a iluminação em sete dias!" Este tipo de atitude de consumo é muito focada em objetivos. Deste modo, também se desenvolvem muitas expectativas e medos sobre a meditação. E como consequência disso podem gerar-se algumas incompreensões face àquilo que é a meditação. A mediação é deixar ir, mas deixar ir não é desistir, claro. É estar livre de expectativas, medos e expectativas e realmente estar consigo próprio, aceitando quem se é, e tentar explorar a sua verdadeira natureza, o seu potencial. Assim, pode haver por vezes o perigo da mediação, o yoga e afins, se tornarem mais parecidos com os ajudantes da mente egoísta. Nesse caso, não haverá muito benefício. Precisamos de ir na direção do deixar ir, da bondade, do aspeto compassivo. Acho que isso é realmente importante.

Pode tudo isso ser usado como mecanismo de escape? Porque acha que as pessoas têm medo de estar sozinhas, em silêncio, consigo mesmas, com a sua consciência, medo do seu reflexo?

Não considero a meditação como uma forma de escape. A meditação requer que se enfrente, que haja contacto. Naturalmente que no início é bastante desconfortável. Estar consigo mesmo, aceitar o que existe dentro de si próprio, o que existe à sua volta, isso não é assim tão fácil. Mas na verdade não se é assim tão mau, a situação, a natureza real, a natureza da situação, a situação real, não é assim tão má como se pensava. E quando realmente se observa e enfrenta, não são assim tão poderosas as coisas negativas que possam eventualmente surgir. E a natureza daquilo que se encontrou é o que chamamos de genuíno, para além dos conceitos, há consciência, há compaixão, há amor, há capacidade, e há espaço, muita sabedoria. Existem capacidades dentro de cada um. O fundo de todos nós é realmente muito genuíno. Contudo, normalmente não sabemos como ligar-nos ao nosso coração genuíno verdadeiro, à genuína natureza básica da nossa mente. Neste sentido a meditação não é uma fuga, não se trata de ignorar os pensamentos, as emoções, negar o stresse ou fugir de algo, não é isso. Consiste apenas em procurar a raiz do medo, do stresse, do que sentimos, das emoções e todas essas coisas. Mas por vezes as pessoas não sabem e é por isso que quando se está a meditar surge o sentimento de solidão e a vontade de ir à procura de estímulos no exterior. E mesmo não tendo aprendido meditação, há pessoas que por vezes se sentem sozinhas. Toda a gente sente algum tipo de solidão, de isolamento, como se fosse algo dentro do próprio corpo, como que a um nível biológico. E como lidar então com isto? Como referi há pouco, por vezes podemos encarar, enfrentar o medo e aceitá-lo. Mas, fazer isso no início é muito difícil. Daí a importância da prática da meditação ser passo a passo. Primeiro precisamos de desenvolver uma consciência da nossa respiração. Respirar... inspirar e expirar... enfrentar e aceitar com a respiração. E sempre que estiver ciente da sua respiração, o que quer que ocorra na mente está bem... Qualquer que seja o pensamento que surja, deixe-o vir e deixe-o ir... Se não se esquecer da sua respiração, tudo estará bem. E assim, lenta e gradualmente, podemos ir encarando a nossa solidão e no meu caso o pânico.

Algumas pessoas dizem que não conseguem meditar porque não conseguem estar quietas. Qual a sua opinião sobre meditação ativa?

Em relação à meditação, sim também existe a meditação a andar. Habitualmente existem dois tipos de meditação, a meditação formal e a meditação informal. Na meditação formal, quando se medita, o tempo é completamente dedicado à meditação. Não se mexe no telefone, não se vê televisão, não se fala com outras pessoas. Na meditação formal o tempo é exclusivamente dedicado à meditação. A meditação formal pode ser feita sentado mas se for difícil fazê-lo sentado pode fazer-se de pé e a andar também mas sempre sem comunicar, sem telefone e todas essas coisas. Depois há a meditação informal, onde é feita a aplicação da meditação à vida quotidiana. Enquanto se conversa, se está a andar, a jogar, a fazer exercício, ou em gaming spots, em qualquer sítio, em qualquer altura, trata-se apenas de estar atento e consciente. E estar consciente também de como cada tipo de meditação contribui para uma aprendizagem. E este é o ponto aqui. Nós precisamos das duas, a meditação formal ajuda a meditação informal e a meditação informal ajuda a meditação formal.

Estamos a viver numa espécie de sociedade emoji, onde as pessoas (não só as mais jovens) já quase não falam umas com as outras, não se encontram, não expressam sentimentos, opiniões, medos, usam o telemóvel para tudo, menos para falar. Mesmo se as chamadas são gratuitas. Qual será o resultado último de tudo isto?

Penso que precisamos de ter contacto humano, face a face. Quando comunicamos, muito daquilo que comunicamos é não-verbal, sem palavras. E quando se perde este contacto, creio que muitas coisas também faltarão na nossa vida. Penso que é importante tentar não comunicar sempre através do telefone. Claro que através do telefone, da internet conseguimos aprender coisas, ter acesso a nova informação e até se pode aprender sobre meditação. Há vantagens mas isto pode ser uma desvantagem. Quando se é um praticante de meditação, independentemente com o que se esteja a deparar, o mais importante é transformar-se a si próprio e ser um guia para si próprio. O problema é que nós desenvolvemos hábitos. Utilizamos constantemente o telefone e depois criamos um hábito, e depois este hábito instala-se no corpo, dentro dos nervos, das células. E mesmo que não se queira tocar no telefone e se pense que falar muito ao telefone faz mal, começa a surgir uma comichão nas mãos, "preciso de agarrar no telefone!" Em relação a este tipo de hábitos, transformá-los é bastante difícil. Mas precisamos de nos conduzir e se queremos construir um novo hábito, isso levará 30 dias. Então tenta-se mudar pouco a pouco, devagar, construindo lentamente um novo hábito durante 30 dias. E depois de 30 dias será fácil.

Está a perder-se a humanidade? A culpa disso é só da tecnologia? O que pode ser feito?
Penso que precisamos construir mais interações humanas, comunicação. Creio ser muito importante ouvirmo-nos uns aos outros, isso é realmente importante! E também penso que é realmente importante transformarmo-nos individualmente e fazermos amizades. Costumo ir a muitos centros de meditação e dirijo alguns mosteiros e o problema é o mesmo, nos centros de meditação, nos mosteiros ou em empresa. Por vezes ensino meditação em empresas e em algumas organizações. Aconselho -os que o mais importante é a amizade, a relação humana. O trabalho é a segunda prioridade, a primeira é a amizade. E quando existe amizade, o trabalho torna-se automaticamente bem-sucedido e a criatividade benéfica.

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