Aberto o envelope, Hollywood declara que o Óscar de melhor filme do ano vai para... a cerimónia dos Óscares! Música em crescendo, a casa vem abaixo com aplausos. É assim neste ano. Nem os filmes magníficos selecionados pelos seis mil membros da Academia conseguem fazer frente às polémicas que têm ensombrado uma cerimónia que se quer solidária e sorridente..Felizmente, nesta cidade da ficção em movimento, tudo o que choca pode ser adicionado ao processo criativo. A presidente da Academia, Karey Burke, disse há dias que "a falta de transparência tem mantido a cerimónia nas bocas do mundo, provando que os Óscares continuam relevantes e que as pessoas querem debater os temas que vemos nos filmes". Então é isso: num mundo em transição em que a má publicidade pode ser boa ideia, que venha a controvérsia, pois só com visibilidade se comunicam os temas que nos movem..Os problemas começaram quando o corpo legislativo da Academia tentou criar a categoria do filme mais popular do ano, talvez para atrair o público televisivo jovem que lhe escapa. A resposta da indústria foi severa. Mais tarde, foi preciso arranjar apresentador, a decisão politicamente polida foi recair em Kevin Hart, um cómico que escrevera graçolas homofóbicas nas redes sociais. Hart ainda se desdobrou em esclarecimentos. Não serviu de nada. Foi abocanhado pela discórdia e voltou atrás na aceitação do convite. A Academia decidiu, então, que seria boa ideia optar por um formato raro, o do espetáculo apresentado ao mundo sem apresentador. É neste ponto que estamos. Ninguém sabe quem irá conduzir a viagem pela nova galáxia..A questão da música também tem sido problemática. A organização começou por anunciar que, em vez das cinco canções habituais, o espetáculo incluiria apenas dois temas. Foi um escândalo mas, na verdade, tudo isto é mais do que simples mesquinhice, pois entra a direito nos grandes temas sociais. Porque pode Lady Gaga aceder a milhões de espetadores quando cantar o tema de A Star Is Born mas idêntica cortesia não é estendida ao duo Kendrick Lamar e SZA da canção de Black Panther? A Academia já voltou atrás, mas durante algum tempo houve punhos erguidos no ar contra a opressão diária..A Academia também resolveu outro escândalo: já não vai substituir os apresentadores dos Óscares entregues aos atores e atrizes, tradicionalmente os vencedores do ano anterior, por gente mais conhecida. A reviravolta na tradição tinha deixado a pairar no ar uma suspeita: será que Hollywood teme que a sua torre de marfim seja invadida por pelintras do cinema independente? Não deixa de ser interessante notar que, ao ter considerado aquela outra ideia, foi a Academia que tirou prestígio aos seus galardoados e à sua própria relevância..Como seria de imaginar numa indústria onde o ego bipolar é frágil e/ou vingativo, não é a primeira vez que a corrida inclui conflito político ou sexual, ou ambos. Woody Allen e Roman Polanski aparecem na conversa. Recentemente, no entanto, o tom do protesto criou duas vagas gigantes: o OscarSoWhite, que acusa a Academia de segregação, e o mais recente MeToo. À combustão junta-se neste ano um novo ingrediente: vivemos a era Trump. O som do discurso atingiu nível bombástico. Um dos filmes metidos neste turbilhão é Green Book, nomeado para melhor filme do ano.. Green Book conta a história de um pianista de raça negra, Don Shirley, que leva como motorista um italo-americano ao longo da tournée que faz pelos recantos mais segregados da nação. O filme poderia ser encaixado na categoria difusa da dramédia, tem ritmo, coração, Chopin e até mesmo Joe Pan, diálogo entre gerações, orientações, culturas, raças. Na mesma veia, a equipa de Green Book é uma alegria. Os atores ao centro, Viggo Mortensen e Mahershala Ali, são rigorosos mas acessíveis. Octavia Spencer, produtora e oscarizada como atriz por direito próprio, tem elevado o perfil e a luta afro-americana..Em dezembro, num cartão de agradecimento enviado após ser anunciada a revoada de nomeações para o seu filme, lembro-me que Peter Farrelly aludiu à sua estupefação. "Nunca fiz filmes para obter prémios ou outro tipo de recompensa, se não contarmos com os abraços da família e dos amigos quando regresso a casa, em Rhode Island." Está tudo dito. Rhode Island fica no lado oposto do país, no nordeste branco, gelado. Green Book é um filme que vem do outro mundo, longe das lutas culturais de Los Angeles..Até que várias histórias sobre o realizador vieram à tona. Passou a constar que nos anos imberbes da sua carreira - repito: Farrelly detesta o lado intocável do estrelato e até colocou matéria pegajosa no cabelo da Cameron Diaz no There"s Something about Mary - este mesmo realizador tinha por hábito expor-se frontalmente em jogos de camarim. A descoberta e a confissão levaram ao desassossego: será que nesta época de MeToo a Academia vai dar o seu aval glorioso ao percurso profissional de quem abusou dos colegas? Por fim, a matéria foi arquivada. Seja como for, Green Book é um filme que nos permite sair do cinema satisfeitos com o nosso compasso moral. Talvez por isso, continua favorito. Apesar de tudo. Apesar de Nick Vallelonga..Nick Vallelonga é autor do guião nomeado e filho de Tony Lip, o tal motorista branco que, em 1962, conduziu o excelso Don Shirley pelas estradas perigosas do Alabama. Foi Nick Vallelonga quem, em 2015, publicou isto no Twitter: "Donald Trump está 100% correto. Muçulmanos festejaram na rua quando as torres vieram abaixo. Lembro-me de, tal como muita gente, ter visto isso num noticiário local da CBS", em referência a alegadas manifestações de alegria em Nova Jérsia no dia 11 de setembro 2001, uma das teorias da conspiração defendidas por Trump e que a comunidade muçulmana nos Estados Unidos considera ofensiva..Mahershala Ali, ator nomeado e possivelmente vencedor, é muçulmano. Pior do que isso, a família de Don Shirley disse recentemente que o filme é uma "sinfonia de mentiras" e Viggo Mortensen, o ator dinamarquês que encarna o corpanzil generoso do chofer Tony Lip, proferiu numa entrevista a palavra nigger, o que, em boca de homem branco, é considerado inadmissível há décadas. Para um filme que fora criticado por ser mais uma história de homem branco a salvar o desgraçado homem negro, esta rajada de notícias não tem ajudado..Contudo, se houvesse Óscar para o produto mais polémico do ano, o vencedor seria Bohemian Rhapsody. Recebeu cinco nomeações, uma delas para melhor filme. Desde logo vale a pena assinalar que, ao contrário de Green Book, Bohemian Rhapsody é um colosso de bilheteira, tendo faturado 800 milhões a nível global. Maior a fortuna, maior o ultraje. Mesmo na noite dos Globos de Ouro era palpável o elefante no meio do salão: o filme venceu, sim, mas vinha sem realizador..Bryan Singer, que presidira a parte das filmagens antes de ser despedido, não estava, não subiu ao palco. Desapareceu, como naquelas fotografias dos regimes totalitários em que há caras sanadas do retrato e da história. Neste momento, Bohemian Rhapsody não tem realizador mas continua nomeado para o prémio que fecha a noite dos Óscares, o de melhor filme do ano. Singer não foi nomeado no escalão de melhor realizador..O mistério do desaparecimento de Bryan Singer não ser mistério nenhum. Apesar do sucesso, o comportamento de bastidores tem sido alvo de escrutínio, sobretudo, nas relações que, consta, insiste em manter com rapazes jovens, alguns de 13 anos. No caso de Bohemian Rhapsody a versão oficial referiu apenas que o realizador fora despedido porque faltava ao emprego. Dizia-se que era demasiado temperamental, que atirava com coisas..Nem mesmo o ator principal, Rami Malek, gosta de entrar em confissões que possam distrair de todo o trabalho que o trouxe até aqui. "O que se passou naquele dia não foi exatamente o que se diz por aí. Trabalhámos num espaço em que se notava um empenho enorme por parte de toda a gente envolvida. Havia, nas filmagens, várias visões que competiam entre si e, claro, os ânimos podem por vezes ofuscar a razão quando tentamos contar a nossa versão do Freddie. Não posso adiantar mais do que isto.".Mais recentemente, Malek, que como quase todos os nomeados percorre o circuito na procura de votos, disse no festival de cinema de Santa Bárbara que a situação vivida nas filmagens "não foi agradável". Bryan Singer nega as alegações. Ainda é cedo para prever se aqueles dois elementos - a vida sexual do cineasta e o facto de o filme não dispor de autor que defenda o produto entregue às plateias - poderão ferir de morte a candidatura do filme..Dito isso, é interessante verificar que, num momento em que há tanta atenção posta no assédio sexual, um cineasta predatório como Singer continua a ter emprego. Harvey Weinstein não beneficiou de tanta sorte. E Kevin Spacey, morto em House of Cards, apagado do filme de Ridley Scott e homem sem carreira à vista, anda escondido algures quando não reaparece no tribunal. Com Singer o cenário afigura-se menos severo. Trabalha. É remunerado..Até à noite de 24, quando o Dolby Theater ficar iluminado, haverá mais choques para observar. É possível que a sátira Vice, sobre a ascensão meteórica de Dick Cheney, continue a sofrer diante dos votantes republicanos. Talvez o favorito da noite, Roma, perca votantes com a ganância do patrão financiador, a Netflix, que tem tentado circundar os cinemas e os canais de distribuição estabelecidos..Mesmo A Star Is Born talvez não sobreviva a acusações de machismo no retrato de uma mulher que, outra vez, nunca triunfa por mérito próprio e precisa de um homem para chegar ao topo. Há coisas que mudam devagar. Mas nem tudo se mostra problemático. Também vai haver lugar na competição para finais felizes..*Jornalista, vive em Los Angeles há trinta anos e tem trabalhado sobre a indústria do cinema e da televisão. Passou pel'O Independente e pelo Expresso e escreveu para a Kapa, a Elle e a DN Ócio.