É difícil fazer descobrir e amar a poesia e a literatura. Mas há estratégias de simplificação que nos deixam perplexos, como esta sinopse que, num manual escolar, o humorista Hugo van der Ding apresenta do Livro de Cesário Verde: "Em que um tipo dá uns passeios por Lisboa e só não pede o dinheiro de volta porque não tinha pagado nada"..Não sou tão conservador que rejeite uma aproximação mais desenvolta e juvenil, mais adequada ao mundo das novas gerações, das grandes obras literárias. Daniel Pennac escreveu alguns livros a insistir, com razão, na necessidade de aproximar os objetos de leitura propostos aos jovens das linguagens e modos de ver o mundo do nosso tempo. Mas isso não significa atribuir aos jovens, à partida, um certificado de atraso mental e falar com eles como falamos com os recém-nascidos..Ora entre um "dá-dá-gu-gu" e a original apresentação com que Hugo van der Ding pretende aproximar os jovens leitores da maravilhosa poesia de Cesário, a distância mental é curta..Pedro Abrunhosa, que é um bom músico e cantor, decide entrar também na propedêutica literária, com o seguinte comentário ao Amor de Perdição: "Tivesse Camilo Instagram quando foi preso e teria aumentado exponencialmente o número de seguidores". Não se entende em que é que este jogo simplista de anacronismo primário pode ajudar um jovem leitor a entrar no mundo, tão longínquo para nós, do Amor de Perdição. Mas é modernaço, fala do Instagram, está feito..Não li estes criativos manuais de ensino literário e o meu conhecimento destas pérolas críticas chega-me pelo Facebook, através dos posts do meu amigo António Carlos Cortez, um professor e poeta que se bate denodadamente pelo ensino a sério da literatura e contra o processo de infantilização e empobrecimento intelectual que alastra pelo nosso ensino, não obstante a existência de excelentes professores e dedicados bibliotecários, que mantêm acesa a "pequenina luz bruxuleante" (Jorge de Sena) da leitura nas escolas..Mas certamente não serão apresentações como estas, feitas de graçolas sem graça nem sentido, que poderão ajudar os esforços de quem se bate pela leitura, pelas humanidades e contra o rebaixamento do ensino..Tivesse Eça de Queirós o Instagram e não teria de escrever muitas páginas para retratar a sociedade do seu tempo! Nesse tempo, como hoje, o ridículo infelizmente não matava! Mas outro obstáculo à leitura, mais sério e grave, está na tendência para a revisão censória das obras literárias, que alguns "leitores sensíveis" preparam para as editoras, por forma a extrair das obras os seus conteúdos chocantes e pecaminosos..Está demonstrado que Eça de Queirós é racista. A jovem autora desta descoberta enganou-se no alvo, porque mencionou uma página, de que não percebeu a ironia, em que Eça justamente desfaz no esclavagismo. Mas poderia ter encontrado outro passo dos Maias em que, ao encontrar um grupo de negros no teatro de S. Carlos, Carlos da Maia, interrogando-se sobre "quem seriam, porque estavam ali, aqueles africanos de perfil trombudo?", diz ao Cruges, com espanto, "tu já reparaste nesta extraordinária carapinha, Cruges?", ou mesmo mencionar a expedição colonial de Gonçalo Mendes Ramires. Não, o problema para a investigadora era a preferência do autor pelas louras em detrimento das trigueiras, já que toda a preferência estética presume uma ideologia rácica e as morenas portuguesas são consideradas por cá, como é sabido, uma raça inferior..Ora um "leitor sensível" poderá encarregar-se numa futura edição de Eça de eliminar esses elogios preconceituosos às louras e dar igualdade nas preferências amorosas de Carlos da Maia a louras, morenas, ruivas, negras, mestiças ou albinas, dando assim equivalência a todas as cores e tons de pele..A literatura passou historicamente por muitas provas: inquisições, indexes e censuras várias, queimas de livros, programas impostos de engenharia social e agora este ataque dos "leitores sensíveis" que proíbe que um personagem de Enid Blyton seja adjetivado como "gordo", devendo antes ser considerado "grande". Enquanto pessoa naturalmente sensível às ofensas aos gordos não posso esconder alguma simpatia por esta decisão, mas a minha profunda e inabalável oposição a todas as formas de censura sobrepõe-se imediatamente a esse momento de fraqueza e a minha indignação com estas tendências censórias cresce e consolida-se..Entre a infantilidade de meter Camilo no Instagram e a censura do racismo pró-louro ("gentlemen prefer blondes...") expresso por Eça na sua obra, sem cuidado algum com as morenas, a literatura vive tempos difíceis. Como dizia Fernando Pessoa, "a estupidez humana é grande, e a bondade humana não é notável". Daí que seja cada vez mais necessário e vital lutar pela literatura, lutar pela cultura na educação, lutar por continuarmos a ser plenamente humanos. Lutar contra o Reino da Estupidez!. Diplomata e escritor