A liberdade é para os outros

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A liberdade, tal como a justiça, não é um ideal abstrato. Ou pelo menos, sendo também ideal, não se esgota nele. A liberdade é uma prática situada, que decorre de um contexto histórico-político e por isso representa coisas diferentes para comunidades distintas.

Até ao alvor da modernidade, a liberdade era concebida sobretudo como aspiração individual e interior, essencialmente centrada na exigência de liberdade de pensamento, ou então designava uma condição social, distinguindo os homens e mulheres livres dos escravizados. Fruto das transformações filosófico-políticas do iluminismo, a Declaração de Independência dos Estados Unidos consagra a liberdade como um direito inalienável do indivíduo ao mesmo tempo que dá corpo à tendência crescente de coletivizar a liberdade, que na levée en masse das revoluções se transforma em exigência, aspiração e combate dos direitos de grupo. E neste contexto começa a configurar-se uma tensão.

De um lado, situa-se a dimensão aspiracional da liberdade, como valor e ideal, que decorre de uma pulsão individual; de outro, a luta coletiva para conceder liberdade. Ora é justamente aqui que se situa o nó tensional, que a voz do poeta alemão Friedrich Schiller tão claramente exprime: "Pode deixar-se alguém ser livre, mas não se pode dar liberdade." E que liberdade? Significa esta liberdade coletivizada, emancipação? Exigência de justiça social? Autonomia? Independência? Rejeição da submissão da vontade individual que o contrato social consagra?

A singularidade do tempo presente é a de se conceber crescentemente a liberdade como um conceito quase oco, que significa tudo e o seu contrário. Em nome da liberdade de Abril defende-se o imobilismo das leis laborais; em nome da liberdade exige-se a abolição dos direitos laborais; em nome da liberdade exige-se o fim da proteção da vida; em nome da liberdade exige-se a defesa do contrato vital; em nome da liberdade demanda-se o direito à blasfémia; em nome da liberdade a limitação do discurso do ódio; em nome da liberdade ataca-se o Capitólio, em nome da liberdade faz-se a sua defesa; em nome da liberdade pratica-se o negacionismo vacinal e em nome da liberdade exige-se esclarecimento.

A liberdade não se esgota no ideal nem na pulsão. Não é manifestação do ego psicótico que exige que a realidade se submeta à sua vontade. Constitui, na verdade, uma prática de reconhecimento, o reconhecimento do direito do outro à mesma liberdade de escolha, de circulação, expressão, fé, pensamento e cultura. A resolução do nó tensional faz-se olhando para este direito fundamental numa perspetiva relacional e de reconhecimento, como um direito que não é exclusivamente pessoal e personalista, mas que pertence a muitos indivíduos simultaneamente. Assenta afinal no reconhecimento do direito do outro à mesma liberdade. Se a pulsão de ser livre, como dizia Schiller, é intrínseca à natureza humana, na sua manifestação social ela é sobretudo gesto de convivialidade e fraternidade social. Lutar pela liberdade não é afinal um ato egoísta, mas é sempre defesa da liberdade dos outros.

Reitora da Universidade Católica Portuguesa

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