Estava eu em Caracas no dia da morte de Hugo Chávez, a 5 de Março de 2013. E fiquei por lá por mais alguns dias. Quando foi dada a notícia, eu estava num autocarro e vi como os passageiros caíram em lágrimas, muitos deles..No dia anterior tinha estado num edifício das Relações Exteriores e lá de cima conseguia ver o Palácio de Miraflores, presidencial, e no lado oposto, mais distante, o complexo edifício da secreta, no cimo de uma colina. Pelas ruas via um mar de manifestantes pro-Chávez, de vermelho. Também vi anti-chavistas..No dia em que foi anunciada a morte de Chávez, a imprensa internacional falava de blindados na cidade, eu andei um pouco por Caracas e não vi blindado algum. Sendo angolano, um país que teve a sua guerra, bem prolongada, era suposto eu saber o que é um blindado, talvez os jornalistas americanos ou correspondentes tivessem visto outro tipo de blindados no centro da cidade, que eu não conhecia..Depois vieram as trocas de farpas e a expulsão de diplomatas americanos e o filme que se seguiu. Até hoje. Hoje, os media internacionais, com a força que têm, dizem-nos que o Presidente Maduro, que substituiu Chávez, está sozinho, abandonado pelo povo e pelo exército. Não seria mais Presidente se isso fosse verdade. E vejo a União Europeia, pelo menos o seu parlamento, centro da democracia, a reconhecer como presidente interino de um país soberano alguém que não teve o voto do povo para ocupar o lugar..Esta coisa dos homens isolados, sem povo e sem ninguém, faz-me lembrar o meu próprio país, com a propaganda oficial sempre a dizer que Savimbi estava isolado, sem homens, sem apoios, e hoje ainda anda o país às voltas para reintegrar todos os que vieram das matas, mais de cem mil ex-militares e seus familiares. Savimbi ameaçava cada um deles no caso de pensarem em desertar? É absurdo. Tanto que milhares desertaram e milhares se mantiveram pelas ideias e pela fé na sua luta..Não tomo parte na questão da Venezuela, como não tomo parte em Angola, mas temos de admitir que precisamos de cautelas na leitura dos factos. E precisamos de saber que há sempre e sempre interesses escondidos atrás da forma como o mundo e a informação são conduzidos. Há gente especializada em criar estados de alma e de opinião segundo o seu interesse, mesmo sem os jornalistas se aperceberem. Outra vez Angola: há pouco tempo nos faziam acreditar que vivíamos num país feliz e que éramos mesmo felizes. De repente, para o mesmo partido, afinal estávamos no inferno e nos prometem novo paraíso, depois do purgatório e da desinfecção. Há muito aprendi que no outro lado há também gente como nós, com sentimentos e opiniões próprias, ainda que não semelhantes aos nossos..Nos meda internacionais não se chama de ditador ao Presidente chinês, claro, tem dinheiro e poder, é líder de uma superpotência, há que ter cuidado. Mas também não se chama de ditador a Bolsonaro, do Brasil e nem ao Presidente das Honduras. Maduro tem o azar de o "socialismo católico" de Chávez se ter instalado em plena fase de recuo da esquerda. Nunca antes, mesmo nos países democráticos, se tinha encostado tanto homem de esquerda às grades de cadeias por crimes de corrupção, peculato, etc.. De repente, os de direita são uns santos, incluindo o súper-juiz Moro, do Brasil, que indo para o Governo já não pode investigar Bolsonaro, Temer, ou o filho de Bolsonaro..Há uns meses Moro dizia-se sem ambições políticas, mas fica agora muito complicado acreditar-se que o seu julgamento não tivesse tido ao menos uma unha de preconceito político. No ano passado, eu ainda teimava com colegas meus que ele estava apenas a fazer de juiz e dentro da lei. Não estou nem arrependido, nem derrotado, estou feliz por conservar em mim ainda alguma ingenuidade. A mesma que leva milhões de pessoas de todo o mundo a acreditar que na Venezuela ninguém apoia Maduro, apenas porque os média nos dizem isso todos os dias. No mundo continua a prevalecer a lei do mais forte..Diretor do jornal angolano O País
Estava eu em Caracas no dia da morte de Hugo Chávez, a 5 de Março de 2013. E fiquei por lá por mais alguns dias. Quando foi dada a notícia, eu estava num autocarro e vi como os passageiros caíram em lágrimas, muitos deles..No dia anterior tinha estado num edifício das Relações Exteriores e lá de cima conseguia ver o Palácio de Miraflores, presidencial, e no lado oposto, mais distante, o complexo edifício da secreta, no cimo de uma colina. Pelas ruas via um mar de manifestantes pro-Chávez, de vermelho. Também vi anti-chavistas..No dia em que foi anunciada a morte de Chávez, a imprensa internacional falava de blindados na cidade, eu andei um pouco por Caracas e não vi blindado algum. Sendo angolano, um país que teve a sua guerra, bem prolongada, era suposto eu saber o que é um blindado, talvez os jornalistas americanos ou correspondentes tivessem visto outro tipo de blindados no centro da cidade, que eu não conhecia..Depois vieram as trocas de farpas e a expulsão de diplomatas americanos e o filme que se seguiu. Até hoje. Hoje, os media internacionais, com a força que têm, dizem-nos que o Presidente Maduro, que substituiu Chávez, está sozinho, abandonado pelo povo e pelo exército. Não seria mais Presidente se isso fosse verdade. E vejo a União Europeia, pelo menos o seu parlamento, centro da democracia, a reconhecer como presidente interino de um país soberano alguém que não teve o voto do povo para ocupar o lugar..Esta coisa dos homens isolados, sem povo e sem ninguém, faz-me lembrar o meu próprio país, com a propaganda oficial sempre a dizer que Savimbi estava isolado, sem homens, sem apoios, e hoje ainda anda o país às voltas para reintegrar todos os que vieram das matas, mais de cem mil ex-militares e seus familiares. Savimbi ameaçava cada um deles no caso de pensarem em desertar? É absurdo. Tanto que milhares desertaram e milhares se mantiveram pelas ideias e pela fé na sua luta..Não tomo parte na questão da Venezuela, como não tomo parte em Angola, mas temos de admitir que precisamos de cautelas na leitura dos factos. E precisamos de saber que há sempre e sempre interesses escondidos atrás da forma como o mundo e a informação são conduzidos. Há gente especializada em criar estados de alma e de opinião segundo o seu interesse, mesmo sem os jornalistas se aperceberem. Outra vez Angola: há pouco tempo nos faziam acreditar que vivíamos num país feliz e que éramos mesmo felizes. De repente, para o mesmo partido, afinal estávamos no inferno e nos prometem novo paraíso, depois do purgatório e da desinfecção. Há muito aprendi que no outro lado há também gente como nós, com sentimentos e opiniões próprias, ainda que não semelhantes aos nossos..Nos meda internacionais não se chama de ditador ao Presidente chinês, claro, tem dinheiro e poder, é líder de uma superpotência, há que ter cuidado. Mas também não se chama de ditador a Bolsonaro, do Brasil e nem ao Presidente das Honduras. Maduro tem o azar de o "socialismo católico" de Chávez se ter instalado em plena fase de recuo da esquerda. Nunca antes, mesmo nos países democráticos, se tinha encostado tanto homem de esquerda às grades de cadeias por crimes de corrupção, peculato, etc.. De repente, os de direita são uns santos, incluindo o súper-juiz Moro, do Brasil, que indo para o Governo já não pode investigar Bolsonaro, Temer, ou o filho de Bolsonaro..Há uns meses Moro dizia-se sem ambições políticas, mas fica agora muito complicado acreditar-se que o seu julgamento não tivesse tido ao menos uma unha de preconceito político. No ano passado, eu ainda teimava com colegas meus que ele estava apenas a fazer de juiz e dentro da lei. Não estou nem arrependido, nem derrotado, estou feliz por conservar em mim ainda alguma ingenuidade. A mesma que leva milhões de pessoas de todo o mundo a acreditar que na Venezuela ninguém apoia Maduro, apenas porque os média nos dizem isso todos os dias. No mundo continua a prevalecer a lei do mais forte..Diretor do jornal angolano O País