"Todas estas situações - pobreza, solidão, violência doméstica, suicídio, entre outras - são o contrário do Natal de Jesus." Quem faz a afirmação é o padre Anselmo Borges nesta entrevista a poucas horas do Natal, uma quadra que quase todo o mundo celebra mas em que as estatísticas são de envergonhar: "Pelo último relatório do índice de pobreza 2019 do PNUD, sabemos que uns 1300 milhões de pessoas (663 milhões são crianças) vivem na pobreza, dispondo de menos de 1,69 euros por dia. A cada dia morrem de fome mais de 30 mil pessoas (16 mil são crianças), e o fosso entre os muito ricos e os pobres cava-se cada vez mais fundo." Daí que conclua: "Este panorama contradiz totalmente o Natal e a sua mensagem essencial.".Lídia Jorge escreve no posfácio que alguns leitores, ao verem este novo livro nas montras, dirão o seguinte: "Aí está mais um livro do padre herege!" Até que ponto se revê na intuição da escritora? Eu não me considero de modo nenhum herege, pois não nego nada de essencial da fé cristã. Procuro apenas, por um lado, ir mesmo ao essencial e, por outro, interpretar e compreendê-la no horizonte de compreensão do nosso tempo e sem ignorar a exegese bíblica contemporânea e os conhecimentos das ciências, desde as chamadas ciências exatas às ciências humanas, incluindo as neurociências e a política. Mas não me custa nada admitir que haja quem (cada vez menos) me considere herege..Alerta no início do livro o leitor para a "datação das entrevistas em ordem à compreensão do seu contexto". É impossível que as palavras sejam ultrapassadas pelo tempo? Há palavras que estão acima do tempo: palavras sábias dos filósofos, dos grandes escritores. Evidentemente, a matemática, as ciências, noutro plano as verdades da fé... No caso deste livro, dado que as entrevistas são dadas ao longo de 12 anos, era necessário prevenir para a sua data e contexto, pois uma coisa é falar sendo Bento XVI ainda o Papa ou já Francisco, viver com a troika ou não....Já conviveu com quatro papas enquanto padre. Desde João XXIII até Francisco, o que faltou ao Vaticano fazer para que a religião católica fosse mais necessária aos fiéis? O que se passou é que, concretamente com João Paulo II e Bento XVI, houve um retrocesso em relação ao Concílio Vaticano II e à transformação que ele quis operar. Entrou-se num "inverno da Igreja", como disse com tristeza o grande teólogo Karl Rahner, o maior teólogo do século XX e de quem me honro de ter sido aluno. Em vez de se levar avante o Concílio nas suas reformas, caminhou-se no sentido de um restauracionismo centralizador, de uma ortodoxia anquilosada, da nomeação de bispos conservadores e mesmo ultraconservadores, abriu-se a porta à liturgia tridentina em latim, vivendo-se na obsessão do moralismo sexual... A condenação de mais de cem teólogos em todo o mundo foi fatal, pois a Teologia ficou quase acéfala, sem vigor. E a doutrina da fé ficou enregelada, numa linguagem que já nada diz ao nosso mundo de experiência, o mesmo acontecendo com os sacramentos, a pregação... A Cúria Romana retomou o seu centralismo, impedindo uma das linhas de força do Concílio: "desromanizar" a Igreja. Consequentemente, as crises foram-se acumulando de tal forma que Bento XVI se viu na necessidade de resignar, num gesto que fica para a história, mas que revela bem a situação de miséria a que se tinha chegado..Os protagonistas católicos críticos da Igreja estão mais calmos nas suas intervenções. Nem Hans Küng se pronuncia. Francisco é o papa necessário a este tempo? O Papa Francisco é uma bênção para a Igreja e para o mundo. Fundamentalmente, porque ele é um cristão, não no sentido de que é batizado, mas no sentido mais profundo: é um verdadeiro discípulo de Jesus, nas suas palavras e obras. Acredita no Deus de Jesus, o Deus bom e misericordioso para com todos e procede como Jesus procedeu: é amigo e servidor de todos, a começar pelos mais frágeis, abandonados, pobres, marginalizados, procura entender os católicos divorciados e recasados, abrindo-lhes a possibilidade da comunhão, a Comissão Bíblica, a seu pedido, acaba de dar instrumentos para a reinterpretação da visão bíblica sobre a homossexualidade e o divórcio... É simples até no vestir, é manifesta e profundamente humano: tem risadas espetaculares, conta estórias e anedotas, comove-se, beija, dorme a sesta numa cadeira depois de visitar os presos, vai a um mictório público, adoraria ir, livre, pela cidade; numa palavra, humanizou o papado. Escolheu o chamado G9, de que já só restam seis, devido ao facto de serem necessários cortes, por exemplo, a prisão do cardeal Pell por abusos sexuais, e está a operar uma reforma funda da Cúria, que é o cancro da Igreja, bem como do Banco do Vaticano, embora uma e outro continuem a ser uma tremenda dor de cabeça para ele. Publicou encíclicas e mensagens que ficam para a história, concretamente a Laudato Sí, sobre o que chama uma "ecologia integral": é preciso ouvir o clamor da natureza e, simultaneamente, o grito dos pobres. Quanto à relação com as outras Igrejas cristãs, está em processo de aprofundar o diálogo ecuménico, e não esquece o diálogo inter-religioso, nomeadamente com o islão moderado, mas também com o budismo e o hinduísmo. Apela permanentemente para a urgência de perceber e combater a ameaça do atual paradigma da financeirização especulativa desenfreada e desregulada dos mercados, que faz inúmeras vítimas. Contra um sistema que "mata", bate-se por um sistema económico mais justo, pois, sem justiça e respeito pelos direitos humanos, não é possível a paz. São constantes os seus apelos à paz e acaba de condenar como "imoral" tanto o uso como a própria posse de armas nucleares. No seu peregrinar pelo mundo, está sobretudo atento às periferias, tanto geográficas como existenciais, tendo-se tornado um líder político-moral dos mais influentes, se não o mais influente e amado..Estranhou o desafio de Francisco aos bispos na reunião sobre a Amazónia para se pronunciarem sobre a hipótese de ordenar homens casados e mulheres como diáconos? De maneira nenhuma. O que eu acho extraordinário, para não dizer uma vergonha, é que este desafio ainda constitua uma notícia. Porque a lei do celibato obrigatório não tem fundamento bíblico nenhum. Jesus não impôs essa lei. Portanto, aquilo que Jesus entregou à liberdade não pode ser imposto como lei, que oprime. Na Igreja, diz Francisco, não pode continuar a obsessão com o sexo. Aliás, no primeiro milénio do cristianismo, houve bispos, padres e papas casados. O celibato obrigatório só começou a afirmar-se no século XI e só se impôs no século XVI com o Concílio de Trento, mas mesmo aí não abrangeu as Igrejas católicas orientais e hoje, no caso da conversão de pastores anglicanos ao catolicismo, eles continuam com as suas famílias. Quanto às mulheres, Jesus teve discípulos e discípulas e não discriminou as mulheres. Jesus até está na base do movimento da sua emancipação e no fundamento da dignidade de todas as pessoas. Portanto, quanto às mulheres, não pode haver discriminação. É uma questão de direitos humanos. Deus não está contra os direitos humanos e, consequentemente, a Igreja também não pode estar. Previno apenas para o facto de as mulheres católicas poderem estar no caminho errado, se reclamarem os ministérios ordenados por uma questão de poder ou de prestígio. De facto, não se trata disso, mas apenas de um serviço. Aliás, o Papa Francisco está constantemente a denunciar os perigos do carreirismo e do clericalismo, que são uma peste na Igreja. É nesses perigos que as católicas não podem incorrer. Jesus não queria uma Igreja com duas classes, clérigos e leigos. Ele queria uma Igreja de irmãos, onde há ministérios, isto é, serviços..Foi muito claro na sua posição sobre a Cimeira de Roma sobre os abusos sexuais na Igreja, no entanto o habitual destes encontros é não passarem das palavras e notícias polémicas. Haverá justiça para as vítimas? Não, neste caso trágico e vergonhoso, o Papa Francisco tomou medidas que estão para lá das palavras. Houve até cardeais que foram condenados e depostos e tem havido colaboração autêntica com a justiça civil, como é exigido, e as dioceses estão obrigadas a criar uma plataforma de fácil acesso para a denúncia de casos e consequente julgamento e acompanhamento das vítimas, psicológico, terapêutico, pastoral e mesmo financeiro. Mais: o Papa Francisco acaba de abolir o chamada segredo pontifício nestes casos de abuso de menores e de pessoas vulneráveis, de tal modo que as autoridades civis passam a ter acesso aos processos canónicos nos arquivos do Vaticano e das dioceses, e a posse e difusão de pornografia infantil - menores de 18 anos e não 14 - passam a ser consideradas entre os crimes mais graves. Eu gostaria que outras instituições tão implicadas ou até mais do que a Igreja lhe seguissem o exemplo neste domínio. Mas confesso que nunca imaginaria que esta podridão dentro da Igreja tivesse estas dimensões, com uma agravante: as pessoas confiavam nela e foi essa confiança que foi traída, a ponto de ter havido bispos e outros responsáveis que, em vez de defenderem as vítimas, antepuseram a defesa da instituição. Foi uma situação vergonhosa, brutal e completamente intolerável..Na sua opinião, estará Francisco a conseguir avançar na renovação que pretendia para a Igreja e para a qual foi escolhido pelos cardeais? Julgo que sim, tenho mesmo a convicção de que sim e de que não haverá a possibilidade de voltar atrás, apesar dos adversários e até inimigos, que também existem, mas que são menos do que se julga; o que se passa é que são muito ruidosos, servindo-se abundantemente das redes sociais..O Papa precisaria de ir mais longe? Não tenho dúvidas de que a Igreja tem necessidade de reformas mais fundas, começando por se interrogar profundamente sobre as razões da sua descredibilização constante, do abandono massivo da prática da fé e da própria fé, concretamente em países europeus profundamente marcados pelo cristianismo e que hoje têm taxas altíssimas de ateísmo. Que se passa? A grande tarefa do Papa Francisco, que é cristão, é ver se converte os católicos, a começar pelos cardeais, bispos, monsenhores, cónegos, padres, a cristãos. A teologia (sem diálogo com as ciências, com a exegese, com a contemporaneidade, parecendo mais feita para formar pequenos funcionários do que propriamente para uma reflexão séria sobre a fé no nosso mundo), a pregação (que paira tantas vezes na abstração, sem qualquer ligação aos reais problemas das pessoas), a liturgia (com uma linguagem tantas vezes abstrusa e, por isso, incompreensível e sem aproximação à sensibilidade de hoje), precisam também de reformas, adaptando-se e atendendo às diferentes culturas no mundo. E dou exemplos de reformas: como é que é possível, no quadro do evolucionismo, continuar a pregar a doutrina do pecado original? Como é que se pode continuar a pregar que a humanidade, com o pecado dos "primeiros pais", Adão e Eva, contraiu com Deus uma dívida infinita e que Deus enviou o seu próprio filho Jesus para, pela sua morte na cruz, pagar essa dívida e assim Deus poder aplacar a sua ira e reconciliar-se com a humanidade? Esta conceção contradiz totalmente o núcleo da mensagem de Jesus: que Deus é amor incondicional, e faz de Deus um Pai pior do que nós. O batismo é para apagar "a mancha" do pecado original? Não precisam os padres de mais preparação académica, não só na Teologia, mas noutros domínios? Aliás, a formação dos futuros padres não deveria acontecer em espaços mais abertos, em paróquias, num contacto mais vivo com a vida real? De facto, os seminários prestaram um serviço no seu devido tempo, mas agora deveriam ser apenas um espaço de encontro desses candidatos aos ministérios para uma formação mais específica, espiritual e comunitária... Quanto à organização, é urgente passar de uma Igreja piramidal para uma Igreja sinodal, porque, se a Igreja somos todos, o que é de todos deve ser participado e decidido por todos. Porque é que não se há de voltar à participação dos fiéis na eleição dos bispos, que seriam nomeados por tempo determinado? No que se refere à Igreja universal, e a Igreja é presentemente a única instituição verdadeiramente global, vejo a sua organização mais em rede, de tal modo que, por exemplo, de dois em dois anos, houvesse um Sínodo sob a presidência do Papa certamente, mas constituído por representantes de bispos de todo o mundo, representantes da Cúria, dos religiosos e das religiosas, dos leigos, eles e elas, nas respetivas proporções. Para quê? Para debater e decidir dos problemas da Igreja e ao mesmo tempo pronunciar-se e iluminar (neste domínio, em ligação com as outras Igreja cristãs e as outras religiões) problemas gigantescos que se colocam à humanidade sobre questões de bioética, a paz, os direitos humanos, as NBIC (acrónimo de nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas, que, na sua interligação e interconexão exponencial, põem em marcha o eugenismo e abrem ao sonho do trans-humanismo e do pós-humanismo), o trabalho, as drogas, a justiça estrutural, a ecologia integral, o diálogo intercultural e inter-religioso... A Igreja tem de manter-se fiel a uma dupla vertente: a mística, ser guardiã do sentido, da transcendência, do sentido último - espera-se dela que seja a multinacional do sentido - e o compromisso político. Num tempo complexo como o nosso, quando, pela primeira vez na história, vivemos num mundo verdadeiramente global, há problemas - acabo de enunciar alguns - que são globais e que só podem ter uma solução global. Ora, a política é nacional, quando muito, regional. Por isso, desafio maior para a humanidade hoje é o de uma governança global (global governance), não digo um governo mundial. Porque a solução, ético-jurídico-política, repito, só pode ser global. As religiões têm um testemunho a dar neste domínio também..Como será a atuação da Igreja portuguesa quando o dossiê eutanásia começar a ser discutido na Assembleia da República no próximo ano? Não duvido de que, mesmo no caso de um referendo - já houve aliás indicações nesse sentido, concretamente por parte do cardeal Manuel Clemente, de Lisboa, e do arcebispo Jorge Ortiga, de Braga -, essa atuação será a de uma oposição contundente contra a eutanásia e propugnando a defesa total dos cuidados paliativos. Eu próprio oponho-me à eutanásia e a que o debate sobre o seu pedido volte à Assembleia da República. Não estou só a pensar nos perigos do "plano inclinado": lembro que em todos os países onde o pedido de eutanásia é legal este plano inclinado existe de facto, com alargamento quantitativo e qualitativo de indicações aceites e autênticos casos de abuso (homicídio) reconhecidos. Por outro lado, surge o perigo gravíssimo de pessoas a serem "empurradas" para pedir a eutanásia e muitos interiorizarem inclusivamente a obrigação de a pedir. Se algum dia se avançasse por esta via da eutanásia, o Estado ficaria com mais uma obrigação: satisfazer o direito à eutanásia e seria confrontado com esta pergunta temível: quem mata? Porque é disso que se trata, não se venha com o eufemismo enganoso, porque mentiroso, de "morte medicamente assistida", pois assistência médica, familiar, afetiva, religiosa (se for o caso), todos querem. No que o Estado deve pensar é na urgência dos cuidados paliativos, que ainda não chegam à maioria dos doentes; o que, pelo contrário, se verifica é que nem os maiores partidos incluíram nos seus programas nem o governo no atual OE para 2020 o reforço no investimento e qualificação de recursos humanos no SNS para esses cuidados paliativos, quando na anterior campanha de 2018 sobre a eutanásia foi esse, se não o único, certamente o maior consenso alcançado e prometido para o futuro breve. Evidentemente, opor-se à eutanásia não é ser a favor da distanásia e da obstinação terapêutica. Deve-se aliviar a dor, mesmo que isso apresse a morte. Uma coisa é matar e outra deixar morrer em tempo oportuno. Sublinho que, por exemplo, a França, que está a rever leis de bioética, excluiu do debate a eutanásia e, no limite, é favorável à sedação profunda e continuada..Já o ouvimos usar o Big Bang como explicação para o universo. Não é um pecado? Significativamente, foi um padre católico, crente convicto, professor da Universidade de Lovaina, George Lemaître, o primeiro a teorizar sobre o Big Bang como explicação para a origem do universo há 13 700 milhões de anos. Mas ele sabia distinguir entre o plano da ciência e o plano da fé, prevenindo, por isso, o papa Pio XII para que não se servisse da teoria do Big Bang como confirmação científica da doutrina da fé católica sobre a criação a partir do nada por Deus, pessoal e transcendente. Na verdade, é necessário distinguir planos. A ciência responde ao como funciona o mundo, a religião tem como missão responder às perguntas sobre o porquê e o para quê últimos. Também o cientista pergunta pelo fundamento último e o sentido último da existência e da história. Porque é que há algo e não nada? Porque houve o Big Bang e não nada? A ciência não pode, com o seu método, responder a estas questões decisivas metafísico-religiosas e existenciais. Aqui, alternativa é: ou a natureza ela mesma enquanto natureza naturante é divina e autocriadora, à maneira de Espinosa, ou o Deus pessoal e transcendente é o criador e, assim, fundamento último e sentido último. O grande médico e filósofo Pedro Laín Entralgo distinguiu muito bem o duplo plano: a ciência é da ordem do penúltimo; a metafísica, a religião e a fé, da ordem do último. E há razões para acreditar e razões para não acreditar em Deus. O crente não pode dizer: "Eu sei que há Deus, eu sei que há vida para lá da morte, que na morte encontrarei a plenitude da vida em Deus." O crente acredita e tem razões para acreditar. Mas o ateu também não pode dizer: "Eu sei que não há Deus, eu sei que com a morte acabo". Ele também não sabe, crê que não há Deus nem vida após a morte, e com razões, que eu compreendo, embora esteja convencido de que é mais razoável acreditar em Deus, transcendente, pessoal e criador, e a razão é que, no próprio ato de confiar, entregar-me confiadamente ao mistério último da realidade, a que chamamos Deus, de quem esperamos salvação, sentido último, a realidade, que é ambígua, aparece mais razoável, com mais sentido e tudo se ilumina..Se o inferno existisse, o ser humano portar-se-ia melhor? Sei que o medo do inferno terá sido o maior polícia do mundo. Mas, como sabe, a moral não se pode basear no medo. O bem deve ser feito porque é bem pura e simplesmente, seguindo a consciência. Para explicar isto, pergunto aos estudantes, por exemplo: o seu namorado, a sua namorada, é-lhe fiel apenas por medo, concretamente, sendo católico, com medo de ir para o inferno; que acha? Respondem sempre: não presta, não vale. Temos de fazer o bem pelo próprio bem, por respeito para com a dignidade humana, isto é, respeitando-nos a nós próprios e aos outros. E, se se é crente, por amor do Deus que é amor. De qualquer modo, evidentemente, considero que sempre é melhor fazer o bem do que o mal, mesmo que seja por medo do castigo no tempo ou na eternidade. Como sabe, não acredito na existência do inferno, mas parece-me claro que esta nossa vida na liberdade tem de ter consequência para a eternidade: as possibilidades que o ser humano tem e não realizou Deus não as pode elevar à plenitude. Como diz o teólogo meu amigo Andrés Torres Queiruga, há salvação para todos, mas com perda eternal de possibilidades, plenitude e felicidade: a pessoa empequeneceu-se por sua culpa e estará eternamente menos realizada do que poderia..A época do Natal era em tempos anteriores boa para a renovação da fé. Esse diálogo de cada um com a religião perdeu-se? Não era só para a renovação da fé, era também para o encontro consigo e com os outros, concretamente com a família, na intimidade e na simplicidade, festejando. Também na esperança, porque um menino é "um novo início", como escreveu Jean-Paul Sartre num auto de Natal, quando estava prisioneiro na guerra em 1940. E o Natal é a celebração do nascimento de Jesus, luz, alegria, esperança para todos. Atualmente, o Natal é sobretudo a bebedeira do consumo e tornou-se um imenso supermercado. As pessoas consomem-se a consumir, entrando numa corrida vertiginosa e estafante para comprar e oferecer prendas e, por vezes, para competir até nos presentes. O dramático é que se oferece presentes, por vezes luxuosos, sem que a pessoa que oferece esteja autenticamente presente. Porque a força do presente autêntico está em ser símbolo da presença de quem oferece. Quando, por outro lado, se fala tanto em ecologia, na necessidade de salvaguardar o meio ambiente, não se percebe os gastos em energia que estonteiam as cidades e até insultam os pobres. Porque é que as empresas de vendas não oferecem a oportunidade de por cada conjunto de compras haver uma percentagem para instituições de solidariedade social? Com isto não estou de modo nenhum a afirmar que não haja já grande solidariedade neste tempo de Natal, realmente há. Mas, neste contexto de consumismo, permita que acrescente que considero uma vergonha que todos os anos vá para o lixo um milhão de toneladas de alimentos, e os portugueses também deitam fora 200 mil toneladas de roupa por ano..O Natal é uma data muito importante para os católicos, um dia que quase todo o mundo passou a comemorar. Estamos a viver um Natal humano e justo? O Natal verdadeiro é o Natal da dignidade humana. O filósofo ateu Ernst Bloch escreveu que foi com Jesus que sabemos que "nenhum ser humano pode ser tratado como gado", e já Hegel tinha escrito também que por Jesus sabemos da dignidade infinita, porque divina, da pessoa humana. Sim, quase todo o mundo celebra o Natal. Mas, pelo último relatório do índice de pobreza 2019 do PNUD, sabemos que uns 1300 milhões de pessoas (663 milhões são crianças) vivem na pobreza, dispondo de menos de 1,69 euros por dia. A cada dia morrem de fome entre 30 mil e 40 mil pessoas (16 mil crianças), e o fosso entre os muito, muito ricos e os pobres cava-se cada vez mais fundo. Este panorama contradiz totalmente o Natal e a sua mensagem essencial. É evidente que não estamos a viver um Natal autenticamente humano e justo, mesmo entre nós, quando pensamos no número dos pobres, na taxa elevadíssima de risco de pobreza, nos sem-abrigo, na imensa solidão que atinge tantos concidadãos nossos a viver sós e abandonados, na violência doméstica, no aumento do consumo de ansiolíticos, no número de suicídios... Todas estas situações são o contrário do Natal de Jesus. O próprio Vaticano, infelizmente, não constitui um bom exemplo, também neste domínio..Assistiu à série de TV The Pope, em que o ator Jude Law encarnava o papa Pio XIII, que exigia o regresso à Igreja com dogmas e sem aceitar as modernices da sociedade atual. Se sim, o que achou daquela visão de uma Igreja sem concessões à renovação? Estou convicto de que, embora sempre em minoria, haverá grupos de católicos que se unirão no sentido dessa visão sem concessões à renovação. Porquê? Em tempos tão conturbados, procurarão e preferirão a religião como refúgio estável, inabalável, de segurança. Sem ter de questionar e de passar pela dor do pensamento crítico. Fixam-se, pois, num tradicionalismo seco, inclusivamente com recurso ao latim, mesmo que nada entendam, usando paramentos ultrapassados, paramentos com rendas e rendinhas... Entendo isso até certo ponto, mas, quando me dizem que o Concílio Vaticano II é a causa da crise da Igreja, respondo: sem o Concílio Vaticano II, a Igreja não passaria hoje de uma seita... E, é preciso dizê-lo, também haverá aqueles que querem continuar com os seus privilégios. As preocupações da Igreja não são grandes no que respeita à imposição de novos valores devido às redes sociais e desenvolvimentos tecnológicos que estão a alterar por completo o modo de funcionar do mundo. Até quando a Igreja se poderá manter fora desta revolução? Não penso que esteja completamente fora desta revolução. Conheço bispos e dioceses que recorrem ao Twitter e a outras plataformas para comunicar o Evangelho e outras mensagens pastorais. O próprio Papa Francisco, que vai além dos 40 milhões de seguidores no Twitter, dá o exemplo, também com referências às vantagens das tecnologias digitais, embora chamando também a atenção para os seus perigos. Tem-no feito concretamente nas suas mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais. Escreveu: "O ambiente digital é uma praça, um lugar de encontro, onde é possível acariciar ou ferir, realizar um debate proveitoso ou um linchamento moral." Referindo-se às novas tecnologias de comunicação, já Paulo VI tinha escrito: "Graças a essas maravilhosas técnicas, a convivência humana assumiu dimensões novas: o tempo e o espaço foram superados e o homem tornou-se um cidadão do mundo, coparticipante e testemunha dos acontecimentos mais distantes e das vicissitudes de toda a humanidade." Na mesma linha, Francisco: "Especialmente a internet pode proporcionar maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos, e isto é uma coisa boa, um dom de Deus." Por isso, faz apelo à abertura da Igreja ao sistema digital, sendo necessário percorrer as suas estradas, indo ao encontro da humanidade, muitas vezes ferida, mas que procura a esperança e a salvação: "Também graças à rede, pode a mensagem cristã viajar até aos confins do mundo. Abrir as portas das igrejas significa também abri-las no ambiente digital." Mas, como disse, adverte também para os perigos: de facto, se a internet é um espaço de informação e de acesso ao saber, manifesta-se igualmente como "um dos locais mais expostos à desinformação e à distorção consciente e dirigida dos factos e das relações interpessoais, a ponto de muitas vezes cair no descrédito". Paradoxalmente, as novas plataformas podem conduzir à solidão, ao individualismo e à exclusão: no meio da conectividade global, encontra-se muita solidão. "O desejo de conexão digital pode acabar por nos isolar do nosso próximo, de quem está mais perto de nós." Sei que há, e bem, celebrações religiosas na web, que se torna também espaço de encontros espirituais, até de retiros. Mas julgo que não se deve abandonar a presença física, pois a pessoa é corpo e precisa do toque, do olhar, do sorriso, do canto comunitário. O Papa também o diz: "A imagem do corpo e dos membros recorda-nos que o uso da social web é complementar do encontro em carne e osso, vivido através do corpo, do coração, dos olhos, da respiração do outro. Se a rede for usada como prolongamento desse encontro, então não se atraiçoa a si mesma e permanece um recurso para a comunhão." Como é sabido, as plataformas aparecerão cada vez mais com mais perigos e ameaças. Porque estão cada vez mais orientadas para captar a atenção para o imediato, para o entretenimento, vídeos, solicitações, fotografias, em sucessão vertiginosa, criando a dependência digital. Neste ambiente de tsunami digital, quem é que ainda pensa, lê livros e quer dar e é capaz de dar conta da sua vida em liberdade? Este é um dos problemas globais de que falei acima, sob o império do novo capitalismo digital, com o seu domínio não só de intoxicação económica, mas também política e ideológica. Pense-se nos GAFAM, acrónimo dos gigantes da web: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. Neste contexto, aconselho vivamente o livro A Civilização do Peixe-Vermelho, de Bruno Patino, e recentemente traduzido pela Gradiva. Como peixes-vermelhos presos aos ecrãs dos nossos smartphones..Na sua cadeira de Ética a grande pergunta é: "O que devo fazer?" Consegue acordar os seus alunos para este questionamento tão ausente da atual sociedade? Sou um privilegiado também aqui. Realmente, a partir do momento em que entendem que, por causa da neotenia (nascemos prematuros), andamos no mundo com a tarefa primeira de nos fazermos - fazendo o que fazemos, andamos a fazer-nos e, sendo livres, impõe-se que nos façamos bem -, percebem a urgência da ética, que não tem que ver com um fardo de preceitos e mandamentos, mas com a reflexão sobre esse "o que devo fazer?" para ser autenticamente ser humano, plenamente realizado, com os outros, digno e feliz. E ficam despertos. Cá está. A ética é essencial e decisiva, hoje também na sua vertente da bioética. Fiquei positivamente muito admirado quando descobri que no MIT há uma cadeira de ética e também uma outra relacionada com a filosofia. E deste modo acabo de enunciar outro campo imenso, global, o da bioética, que vai exigir reflexão ética, se quisermos continuar autenticamente humanos..Saímos há pouco tempo de uma sucessão de eleições em Portugal. Votou? Exerço sempre o meu direito e dever cívico de votar. Penso aliás que é necessário debruçar-se atentamente sobre as razões da percentagem tão elevada de abstenção nas eleições, não comparecendo sequer nas mesas de voto..Enquanto cidadão, como vê as instituições que nos governam? Louvo o esforço no sentido da estabilidade política. Não posso deixar de achar positivo o que se tem feito para equilibrar as contas. Mas, sinceramente, temo que tenha caído sobre o país um manto de ilusão e de mentira, perguntando até que ponto iremos na sustentabilidade da situação económico-financeira. De qualquer forma, sabe-se que há dez anos as famílias dispunham de mais 175 euros para gastos no Natal. E o que é que se tem feito para diminuir realmente a dívida? E a carga fiscal é pesadíssima. E porque é que há tantas queixas em relação à saúde?! Quanto à escola, lamento a precariedade e os motivos que dão razão ao descontentamento dos professores, bem como o constante experimentalismo; não se pode esquecer que a educação é um dos pilares essenciais de um país. Significativamente, a nossa palavra escola vem do grego scholê, como sabe, com o significado de tempo livre para pensar e governar; talvez não seja por acaso que hoje o que mais falta seja precisamente pensar: é que, contraposto a ócio, temos negócio - do latim nec/otium; ora, para o negócio (e temo que por vezes a própria política se tenha convertido em negócio) e para a técnica, essencial é calcular e não propriamente pensar: a técnica não pensa, calcula, como refletiu Martin Heidegger; por isso, impõe-se acentuar também no ensino superior a importância das humanidades e do pensamento crítico. É necessário refletir e tomar medidas concretas face às dúvidas da opinião pública quanto à independência, imparcialidade e lentidão da justiça. Na base de tudo, tornou-se intolerável o grau da corrupção. Também por isso, impõe-se maior transparência nas subvenções dos políticos... E é urgente, julgo, um pacto de regime quanto a um conjunto de questões fundamentais, com um consenso mínimo e durável, para evitar instabilidade: educação, justiça, segurança social, política externa, incluindo as migrações..Nas entrevistas reunidas neste livro afirma muitas vezes "eu não sou..." Avaliar-se a si próprio é a melhor medida para comentar o mundo? Sim. Penso que é essencial. Para não se cair na necessidade da advertência do Evangelho: "Médico, cura-te a ti mesmo." E é sabido que olhamos para o mundo sempre a partir da nossa experiência, da nossa história, dos nossos pressupostos, das nossas dúvidas, crenças e expectativas. Assim, quando me perguntam por onde é necessário começar em ordem à transformação urgente que se impõe no mundo, pedindo-me que dê um conselho a cada um, a cada uma, digo: "Tente estar sozinho/sozinha consigo todos os dias dez minutos." A pensar, a meditar, a ouvir a voz da consciência e do juízo sobre a vida, sobre o que vale verdadeiramente e o que realmente não vale... Não vejo, sinceramente, possibilidade de mudança de rumo sem uma conversão moral de todos. Só com medidas politicas e leis não vamos lá....Este é um livro com as suas entrevistas. Se fosse o entrevistador, quem gostaria de interrogar? Evidentemente, o Papa, em primeiro lugar, mas também os cardeais José Tolentino de Mendonça e Pietro Parolin. E ainda Anselmo Borges..Pode dizer-se que a biografia bem sustentada que mais gostaria de ler seria a de Jesus?.Tenho lido e até publiquei uma obra essencial sobre a figura de Jesus nas suas diferentes facetas, resultado de um colóquio internacional com os melhores especialistas contemporâneos: Quem Foi/Quem É Jesus Cristo?, que vai na quarta edição. O que eu gostava mesmo de ler era, se existisse, um diário escrito pelo próprio Jesus..Conversas com Anselmo Borges.Vários entrevistadores Prefácio de Jaime Gama e posfácio de Lídia Jorge Editora Gradiva 450 páginas