A bicicleta fez 200 anos no ano passado, teve a sua estreia no dia 12 de Junho de 1817. Neste ano passaram dois séculos da respectiva patente, concedida a 12 de Janeiro de 1818 pelo grão-duque de Baden, na Alemanha, ao autor da invenção. Este foi um barão alemão, de seu nome Karl Friedrich Christian Ludwig (1785-1851), com o título de Freiherr Drais von Sauerbronn. O próprio, de ideias liberais apesar do sangue azul, não apreciava o título, pelo que a certa altura pediu para ser tratado por "cidadão Karl Drais." Nasceu e morreu em Karlsruhe, não longe de Baden-Baden, e a première da bicicleta foi realizada entre a sua casa em Mannheim e uma estação de muda de cavalos, a cerca de sete quilómetros. A ida e volta ao longo de uma estrada que servia a mala-posta demorou cerca de uma hora, bem mais rápido do que conseguia na altura um carro de tracção animal..O bicentenário da bicicleta foi assinalado no Technoseum, Museu de Tecnologia de Mannheim, com uma exposição intitulada 2 Rodas - 200 Anos, em que os dois zeros imitavam as duas rodas. Na exposição mostravam-se alguns dos primeiros veículos de duas rodas, chamados "draisianas" em honra do barão. Os franceses chamavam-lhes vélocipèdes (que tem pés velozes). Em inglês chamaram-lhes dandy-horses ou hobby-horses (cavalos chiques ou de recreio)..A primeira bicicleta quase só tem em comum com a actual o número de rodas. Não tinha pedais. Uma barra de madeira unia as duas rodas. A roda da frente tinha um sistema de direcção muito rudimentar e a de trás um sistema de travagem não menos rudimentar. O condutor, sentado na barra, avançava ao empurrar o veículo ora com uma perna ora com outra, tal como numa trotineta, embora neste caso só com uma perna. Se o impulso fosse grande, podia conservar os dois pés no ar. O grande segredo do invento era a poupança de energia que representa o facto de o peso do condutor estar assente não sobre os pés, mas sobre as rodas. Era uma verdadeira Laufmachine, uma "máquina de andar," como o próprio inventor lhe chamou..Pedais e corrente.O invento da bicicleta por Drais percebe-se melhor se se contar a vida do barão. Nascido em berço de ouro (o pai chegou a juiz supremo do Tribunal de Baden), em estudante embirrou com o latim. Os pais decidiram colocá-lo numa escola privada, onde aprendeu gestão florestal. Mais tarde estudou Matemática, Física e Arquitectura na Universidade de Heidelberg, próxima de Mannheim. Feitas as provas, ganhou o título de "mestre silvicultor," passando a funcionário público em 1810, mas sem ter território florestal atribuído..Na prática o barão podia usar o seu tempo como queria para pôr em prática os dotes inventivos. Um dos seus primeiros inventos, embora malsucedido, foi em 1813, um "carro sem cavalos," um veículo a quatro rodas de propulsão humana. Drais foi também o autor de uma máquina de escrever notas do piano, de uma máquina de estenografar, de uma máquina de picar carne e de um fogão com retenção de calor. O grão-ducado, que já lhe pagava o salário, atribuiu-lhe, após a patente da bicicleta, um lugar de Professor de Mecânica, um título honorário pois o barão não tinha de ensinar nada. O privilégio foi-lhe dado apesar de a draisiana não ter sido um êxito comercial: foi vista como uma curiosidade, que alguns ricos extravagantes exibiam..Várias razões concorreram para o insucesso. Uma foi a eclosão de revoltas na região que abalaram a nobreza. Drais viveu de 1822 a 1827 um exílio no Brasil, onde participou na expedição ao Mato Grosso de Georg von Langsdorff, um nobre germano-russo que foi médico e naturalista. Depois, e talvez mais importante, as estradas estavam esburacadas e conspurcadas pela passagem das carruagens, pelo que os draisianistas preferiam ir pelo caminho de peões, causando acidentes. Cedo a draisiana foi proibida quer em cidades europeias, como Mannheim e Milão, quer em longínquas, como Nova Iorque e Calcutá, facto que mostra como a bicicleta se globalizou rapidamente..A bicicleta haveria de evoluir até ao final do século XIX, quando adquiriu a forma que essencialmente tem hoje. Marcos dessa evolução foram a adição de pedais com tracção na roda traseira, que foi aumentada pelo ferreiro escocês Kirkpatrick MacMillan em 1839; a passagem da tracção dos pedais para a roda da frente realizada pelo serralheiro francês Pierre Michaux, em 1861 (estes modelos de roda dianteira grande foram descontinuados devido aos enormes tombos que proporcionavam); e, finalmente, o modelo moderno, dito de segurança, com duas rodas iguais e pedais que puxam a roda de trás, que se ficou a dever ao industrial inglês John Kemp Starley, em 1885. Uma posterior inovação importantíssima foi a dos pneus. O veterinário John Dunlop inventou em 1887 a câmara de ar para o triciclo do seu filho, lançando toda uma indústria de pneus para bicicletas que os carros iriam aproveitar. Pouco depois, os irmãos franceses Édouard e André Michelin (os mesmos que criaram os Guias Michelin), querendo ajudar um ciclista cujo pneu estava colado à roda, inventaram um outro tipo de pneu..Curiosamente, Mannheim é a terra da primeira bicicleta e também do primeiro carro. O primeiro carro comercial foi patenteado em 1886 pelo engenheiro Karl Benz (1844-1929), cuja empresa começou por ser uma oficina de bicicletas. A primeira viagem automóvel de longa distância foi feita pela senhora Benz, sem que o marido soubesse, quando resolveu, em 1888, visitar a mãe, que morava a mais de 100 km de Mannheim. Mas há mais uma coincidência entre os inventores da bicicleta e do carro: não só nasceram ambos em Karlsruhe como foram aí vizinhos..Drais morreu doente (tornou-se alcoólico) e arruinado (quase só tinha a sua draisiana), mas hoje a sua campa em Karlsruhe é mantida por uma associação de ciclistas. Sem ele não teríamos bicicletas!.Professor de Física da Universidade de Coimbra e divulgador científico.Escreve de acordo com a antiga ortografia