"Nesse verão, tudo girava em volta da morte, do último grande trabalho." Lemos a frase num ponto já muito avançado do livro. Linn Ullmann refere-se ao verão de 2007, quando o seu pai deixou de estar entre os vivos. Mais precisamente, a 30 de julho, às quatro da manhã. "O que me restava dele eram seis cassetes áudio da sua última primavera de vida. A voz dele. E o silêncio. E a minha voz. E todos os sons que não sei muito bem o que são, que o microfone captou, e a que se pode chamar ruído de fundo." Conversas que andaram perdidas durante alguns anos após a morte dele. Ullmann, filha, não sabia o que fazer com o material, apesar de a sua existência corresponder a um projeto planeado a dois: um livro. Quiçá chamado Livro do Desassossego ("talvez pudéssemos roubar ou dar uma volta ao título de Pessoa", escreve a páginas tantas), embora ele sugerisse outro título que nunca conseguira usar num filme seu, por falta de adequação: Todo Fodido no Vale do Eldorado..Ele, Ingmar Bergman, e as ditas gravações resgatadas do sótão constituem o motivo primordial de Os Inquietos, romance de natureza híbrida que agora surge publicado pela Relógio D'Água, numa tradução de João Reis, diretamente do norueguês. Sim, a língua de Linn é a do lado da mãe, Liv Ullmann, apesar de em criança ter aprendido a falar o sueco do lado do pai, nos verões passados com ele em Fårö, na casa de Hammars....Foi de facto nesse lugar que tudo começou, para Bergman, Liv Ullmann e a filha de ambos. Três seres que nunca aparecem juntos numa fotografia; apenas aos pares. Todos registaram, porém, o seu testemunho sobre a ilha sueca e aquela casa que hoje prolonga a mitologia do cineasta. "Não sei, realmente, o que se passou comigo. Se quiser ser bombástico, direi que, ali, tinha finalmente encontrado a paisagem dos meus sonhos, o meu verdadeiro lar. Se quiser gracejar, direi que foi amor à primeira vista", escreveu Bergman na autobiografia Lanterna Mágica (também por cá editada pela Relógio D"Água). Em contraponto a este êxtase, lê-se no livro de memórias de Liv Ullmann, Mutações (edição Nova Nordica), que lá viveu com ele e a filha durante os primeiros anos de vida desta: "A ilha dele tinha abetos retorcidos, com uma estranha tonalidade de verde (...). Quando os dias encurtavam e as cores iam ficando apagadas, difíceis de distinguir, a ilha tornava-se uma prisão, na qual eu não sabia para onde ir, com a minha solidão e insegurança. Sentia uma contínua angústia e ansiava por outros lugares.".Finalmente, em Os Inquietos, Linn resume assim o impacto de Hammars: "Se é verdade que todos têm um lugar - não é verdade, mas se o fosse -, aquele seria o meu lugar, em todo o caso mais meu do que o nome que me deram, porque passear por Hammars não era tão angustiante quanto passear pelo meu nome. Reconhecia o cheiro do ar e o mar e os rochedos e o modo como os pinheiros se dobram ao vento.".Três pessoas, dois sentimentos distintos em relação ao mesmo lugar, uma menina que a ele regressou muitas vezes, quase sempre no mês de julho, como filha "ilegítima", fruto de uma paixão fora do casamento. Na verdade, Bergman e Ullmann, realizador e atriz, tinham-se apaixonado nessa ilha durante a rodagem de Persona (1966), o filme em que ela assume o papel de uma atriz emudecida aos cuidados de uma enfermeira (Bibi Andersson). 1966 é também o ano do nascimento de Linn: seria a última de nove irmãos, filhos dispersos por cinco mulheres. Bergman tinha então 48 anos, e Ullmann 27..Todo este início de vida de Linn, e em particular os seus verões na casa do pai, vêm relatados em Os Inquietos como uma zona franca emocional. A eles retornou nos anos finais da vida de Bergman para levar a cabo a ideia de um livro, em modo de epílogo: algo em torno do trabalho (palavra mágica para o cineasta) de envelhecer, em que ela faria perguntas e ele responderia. Estava combinado. E foi o que aconteceu ao longo de dois anos - quando o pai tinha 87, morrendo com 89 -, embora o velhote já habitasse um outro tipo de lucidez, marcada por divagações, sonhos, medo, morte, mulheres, problemas físicos e Beethoven, não necessariamente por esta ordem..Mas se Os Inquietos assenta na agridoce fantasmagoria e transcrição precisa dessas conversas entre pai e filha, o certo é que, no estilo, o fascinante objeto literário de Linn Ullmann, escritora, situa-se numa zona indefinida entre a memória e a ficção, com o "eu" e "a menina" (ela própria) a conviverem em parágrafos seguidos, numa expressão romanceada de autobiografia. Isto sem deixar de refletir, nas páginas, sobre o método autoimposto: "Para se escrever sobre pessoas reais, como pais, filhos, namorados, amigos, inimigos, tios, irmãos ou transeuntes ocasionais, é necessário torná-las fictícias. Creio que é a única forma de lhes dar vida. Recordar é olhar em volta uma e outra vez, sempre com a mesma surpresa.".Nesse sentido, é uma prosa que se furta ao ritmo e construção de texto mais clássicos para seguir uma espécie de ditado interior. Há frases e tempos que se repetem, como coordenadas sentimentais, há datas e números que são uma linguagem em si, há citações de autores que ajudam a esclarecer ideias, enquanto se fundem com o processo mais ou menos desordenado da memória, e há um desejo de viajar pela individualidade dos pais, a sua solidão secreta, o amor entre eles e para com ela..Nesse ponto, do amor, Linn faz um desvio essencial para falar da vida com Liv Ullmann (84 anos agora). Ou melhor, para falar das várias amas que teve, dos namorados da mãe, dos diferentes períodos nos Estados Unidos (infância e adolescência), das saudades excruciantes, dos telefonemas atrasados, do pânico desses atrasos, da preocupação com as aparências, da beleza do rosto desta atriz-musa, dos seus abraços e do efeito estonteante que tinha/tem sobre as pessoas. "Costumava sonhar com ela", escreve. "No sonho, começo a procurá-la. É uma procura febril pelas estantes e armários, debaixo do sofá ou na banheira, será que se escondeu atrás das cortinas, talvez, das cortinas cor de vinho tinto, na antiga caixa de costura da minha avó ou entre os garfos e as facas na gaveta dos talheres"..O medo da perda maternal dialoga assim com a sazonalidade da companhia paterna. Os verões em Hammars. Para Ingmar Bergman, "os filhos eram um obstáculo ao trabalho criativo". "Não nos queria perto dele quando estava a trabalhar"..E, mais uma vez, o trabalho. Palavra da predileção do homem que, sentindo a proximidade da morte, se deixou entrevistar pela filha na perspetiva disso mesmo, de manter uma agenda ocupada, inclusive nos dias em que preferia ficar na cama, com ela sentada à sua beira, de gravador ligado. As acuradas descrições de Linn desses momentos, ou a simples transcrição das conversas, permitem aceder a uma poderosa frequência íntima, em que as imagens bergmanianas colidem com a inevitabilidade da condição humana. Veja-se este pedaço de um diálogo: "ELA: (...) a morte está sempre presente nos filmes e nas peças de teatro e em tudo o que escreves. / ELE: Bem, achas que sim...? (...) A morte como conto de fadas, a morte como fantasia, sim, mas nunca levei a morte a sério. Isso é o que tenho de fazer agora.".Compare-se com o que escreveu décadas antes (1987) em Lanterna Mágica: "A curiosidade que sinto pela vida tem sido sempre demasiado forte, a minha vontade de viver demasiado robusta, e o meu medo da morte demasiado infantil de intenso que é.".Com Os Inquietos, Linn Ullmann alcança notas de melancolia, humor, perturbação, graça e estremecimento que nos dão entrada num universo familiar tão especial quanto complexo. Não o faz com a arrogância de ser filha de quem é, mas com o desígnio de partilha, intensidade e apaziguamento que só a arte da prosa permite, na sua gestão de memórias e omissões. Pode dizer-se que é um livro sobre um livro que não se escreveu tal como planeado. Mas é sobretudo um romance de emoções palpáveis, a busca de uma narrativa capaz de substituir a fotografia ausente do pai, da mãe e da filha. Os três juntos..Os Inquietos Linn Ullmann Relógio D'Água 352 páginas.dnot@dn.pt