A "incontrolável máquina de bolas de ténis" está de saída do Parlamento

O presidente da Câmara dos Comuns sai de funções nesta quinta-feira sob elogio unânime. O legado de dez anos de John Bercow é marcado pelas inovações e pelo seu carisma, embora tenha sido acusado de parcialidade sobre o Brexit.
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O primeiro-ministro britânico comparou-o a Stephen Hawking e a uma máquina lançadora de bolas de ténis, entre elogios e críticas bem-humoradas; os restantes líderes parlamentares e muitos outros deputados cantaram loas a John Bercow, que se reforma das lides parlamentares ao fim de 22 anos como deputado e uma década como speaker. No final da sessão de perguntas ao primeiro-ministro, na quarta-feira, o homem que ganhou fama internacional graças às suas acaloradas intervenções, em especial os seus brados a pedir "Order", não conteve a emoção.

A preponderância de John Bercow na política britânica aumentou à medida que a crise desencadeada com o Brexit deixou a classe política e a sociedade britânica em polarização crescente. Para desespero de alguns deputados e dos governos conservadores, o presidente do Parlamento deu luz verde a procedimentos até então menos comuns, como as perguntas urgentes. O antecessor, Michael Martin, permitiu 42 perguntas urgentes nos últimos cinco anos (2004 a 2009). Durante o seu mandato de dez anos, Bercow permitiu mais de 600 perguntas urgentes, lê-se na Prospect. Também deu mais tempo às sessões de perguntas ao primeiro-ministro e não deixou nenhum deputado sem ter a oportunidade de questionar um ministro ou secretário de Estado.

Daí o gracejo de Boris Johnson, ao dizer que Bercow tinha "feito mais do que ninguém desde Stephen Hawking para esticar o tempo nesta sessão" legislativa.

O elogio de Boris Johnson

Ainda nas comparações com personalidades, Johnson disse que Bercow, de 56 anos, teria "a reforma mais longa desde Frank Sinatra" -- o popular cantor norte-americano anunciou a reforma em 1971 e fez mais mil concertos até 1995. O primeiro-ministro comparou ainda o olhar de Bercow ao de Tony Montana, o protagonista de Scarface -- A força do poder, interpretado por Al Pacino.

Foi então que, aludindo à paixão de Bercow pelo ténis (na juventude foi um promissor tenista e, adulto, fez par com David Cameron) o ex-mayor de Londres disse, para divertimento do speaker: "Como convém a um distinto antigo participante de Wimbledon, sentou-se na sua cadeira alta e não apenas como um árbitro que decide impiedosamente sobre os melhores pontos do procedimento parlamentar com a sua característica desconfiança à Tony Montana e não apenas como comentador, oferecendo as suas próprias opiniões sobre as discussões que está a assistir -- por vezes ásperas, por vezes bondosas. Mas acima de tudo, como um jogador por direito próprio, apimentando cada canto da Câmara com os seus próprios pensamentos e opiniões como uma máquina de bolas de ténis, uma incontrolável máquina de bolas de ténis."

Finalizou com um agradecimento: "Embora possamos discordar sobre algumas das inovações legislativas que favoreceu, não tenho dúvidas de que foi um grande servidor deste Parlamento."

Até ao dia de ontem, vários conservadores queixaram-se de parcialidade na tomada de decisões. Aconteceu com a escolha de uma emenda do deputado Dominic Grieve para a primeira "votação significativa" em janeiro deste ano, o que era contrário ao costume. Dessa forma, ao aprovarem essa emenda os deputados ficaram com poderes para controlar a agenda parlamentar, o que deixou os conservadores em fúria em relação a Bercow.

Permitiu também que o procedimento de debate de urgência fosse utilizado para debater uma moção, algo que nunca tinha sido feito anteriormente.

Por outro lado, protagonizou uma divergência com a então primeira-ministra Theresa May ao impedir a apresentação do acordo de retirada do Reino Unido da UE pela terceira vez para votação sem uma mudança substancial. Foi acusado também de ser um "remainer-in-chief", isto é, de comandar os esforços para a permanência do Reino Unido na UE.

A essas críticas, respondeu em entrevista ao italiano La Repubblica : "Sou imparcial no Parlamento, mas não imparcial sobre o Parlamento. Se sou parcial é a favor do Parlamento. O Parlamento deve ser ouvido. O Parlamento tem o direito de intervir. O Parlamento deve ter tempo. O Parlamento deve ser respeitado pelo governo e também pela oposição."

Ao longo dos anos, Bercow orientou uma reforma dos procedimentos e tradições do Parlamento. Transformou um bar num berçário para os filhos dos funcionários e abandonou o vestido tradicional do speaker para um fato e gravata -- de padrões excêntricos -- debaixo de uma beca.

O elogio de Jeremy Corbyn

"Quero agradecer-lhe pela forma como usou a sua presidência durante a sua década de mandato. Fez tanto para reformar esta Câmara dos Comuns e a nossa democracia é a mais forte pela forma como o fez. Deu verdadeiros poderes aos deputados", disse por sua vez o trabalhista Jeremy Corbyn. Agradeceu também o seu "excelente trabalho em abrir o Parlamento aos visitantes, às exposições e às crianças papel ajudando-o e reduziu algumas das estranhas convenções e estranhas vestimentas que as pessoas usam neste edifício".

Elogiou também o seu papel de abertura às minorias e à comunidade LGBT de forma a que a Câmara deixe de ser "um clube de cavalheiros que por acaso se situa num palácio para passar a ser uma verdadeira instituição democrática". Acrescentou que o presidente "defendeu o Parlamento quando este teve de ser defendido", e que deseja que o próximo governo continue a ser alvo de escrutínio com o seu sucessor.

A sessão terminou com Bercow a agradecer aos ministros as suas "amáveis palavras" antes de se ter emocionado e agradecido à sua mulher e aos três filhos "pelo apoio, estoicismo e coragem que demonstraram ao longo da última década". Finalizou, emocionado: "Nunca o esquecerei e serei sempre grato por isso."

Mas a sua passagem por Westminster não foi isenta de controvérsia. Os seus gastos, que incluem o uso de carros oficiais e de viagens ao exterior, foram objeto de crítica. Há também alegações de bullying ao ex-secretário particular Angus Sinclair, que saiu em 2010 com um acordo de confidencialidade e uma indemnização. Acordo que viria a quebrar em 2018, ao contar ao programa da BBC Newsnight que tinha sido vítima de comportamento abusivo por parte de Bercow. Um porta-voz do speaker respondeu na altura que "nenhuma das alegações tem substância".

Um gabinete independente (Independent Complaints and Grievance Scheme) a funcionar na Câmara vai investigar queixas antigas, mas a demissão de Bercow irá impedir qualquer consequência.

Londrino do norte da capital, é filho de um taxista e tem ascendência romena. Os avós paternos, judeus, imigraram da Roménia e anglicizaram o apelido Berkowitz). Estudou Política na Universidade de Essex e, antes de enveredar pela carreira política pelo Partido Conservador, fez lóbi na empresa Rowland Sallingbury Casey. Eleito por Buckingham desde 1997, Bercow passou da ala mais à direita do partido para a mais à esquerda.

Bercow foi o primeiro speaker eleito três vezes seguidas. Em 2009 enfrentou oposição, mas nas seguintes, em 2015 e 2017, não teve adversários.

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