A importância de distinguir as consequências das causas
Apropósito dos atuais acontecimentos no Médio Oriente, não percamos tempo a debater com aqueles que, arrogantemente, acreditam na "inata" superioridade moral do Ocidente, ignorando séculos de História, marcados pelo colonialismo e pelo imperialismo, que se prolongam até a atualidade. E muito menos vale a pena discutir com as mentes até hoje marcadas pela má consciência ocidental, devido à tradicional discriminação dos judeus, que culminou no Holocausto. Como cidadão e intelectual africano, esforço-me deliberadamente para me libertar dessas duas influências, que apenas dizem respeito aos europeus e aos seus "settlers" em todo o mundo, em especial nas Américas.
A grande maioria deles, lamentavelmente, acredita, mesmo quando não o diz abertamente, como o fez há dias um ministro israelita, que os palestinos são "animais", isto é, gente (?) de segunda categoria, que não merece ser entendida e tratada como os restantes seres humanos. Isso inclui, vou dizê-lo, certa "Esquerda" (aspas imprescindíveis) ocidental, que sente necessidade de pedir desculpas aos seus amigos judeus por concordar com o direito dos palestinos à resistência, posição duplamente equivocada, pois, a) nem todos os judeus são iguais e, portanto, muitos deles não apoiam a política colonial de Israel; e b) apoiar a resistência palestina também não significa estar de acordo com todas as suas posições e atos.
A tendência de muita gente para priorizar a análise das consequências dos recentes e surpreendentes ataques do Hamas a Israel e não das suas causas estruturais é o erro epistemológico de base dessas apreciações. Tal vício levou alguns, inclusive, a acreditar cegamente em fake news propaladas nas primeiras horas após os ataques, dando conta da suposta decapitação de bebés, assim como da violação de mulheres por parte dos palestinos, o que já foi desmentido. A fórmula desses bons samaritanos é tão simplória - "Os palestinos têm direito à resistência, mas os atos do Hamas são terrorismo" -, que custa a acreditar nos reconhecidos méritos intelectuais de alguns dos seus autores.
Não se nega, obviamente, que o assassinato e o sequestro de civis por parte do Hamas são atos inaceitáveis, embora só quem tenha sido forçado a viver como têm vivido os palestinos nos últimos 75 anos possa avaliá-los com justeza. Mas, além do historial do Estado de Israel e da sua polícia secreta na realização de atos idênticos, como classificar o cerco de Gaza, a expulsão dos palestinos das suas casas, a fim serem ocupadas por colonos judeus, a repressão de manifestações a tiros, a selagem com cimento de poços de água, o corte de fornecimento de energia elétrica e, nos últimos dias, os bombardeamentos indiscriminados da aviação israelita contra prédios habitados por civis?
Sejamos honestos: trata-se de terrorismo, praticado quer pelo Hamas, quer pelo Estado de Israel. Acrescente-se, além disso, duas notas: primeiro, a enorme desproporção de meios entre Israel e o Hamas; segundo, o facto de, conforme está largamente documentado, o Hamas ter sido, se não criado, pelo menos estimulado, quando surgiu como uma organização religiosa, pelas autoridades israelitas, a fim de criar dificuldades à OLP e outras organizações palestinas, laicas e progressistas.
Tudo isto (e os seus horrores), diga-se a terminar, é consequência de uma questão de fundo: a política de ocupação e anexação do território palestino por parte do Estado de Israel, que já demonstrou cabalmente não estar interessado na solução de dois Estados preconizada pela "comunidade internacional" (expressão que é difícil utilizar sem sorrir amargamente) e que, hoje, a maioria dos povos e países árabes aceita, bem como uma parte da sociedade israelita.
Pela parte que me cabe, não tenho dúvidas de que a causa do prolongamento da guerra no Médio Oriente é o projeto sionista (que diferencio do judaísmo) de inviabilizar a existência de um Estado palestino na região, implantando um regime de apartheid. Enquanto essa causa não for ultrapassada, a paz não terá a menor chance. A não ser, talvez, quando se consumar o desaparecimento da Palestina e o regime sionista de Telavive aplicar aos povos árabes da região a "solução final" que Hitler apregoava contra os judeus.
Será essa a causa dos que, presentemente, se focam apenas nas ações do Hamas e recitam o mantra "eu defendo a Palestina, mas o Hamas não é a Palestina"?
Escritor e jornalista angolano