- É como digo a Vossa Excelência: os animais são mais obedientes do que as plantas. Ou seja: a audição tem maior presença nos animais. E é aqui que começa a nossa supremacia, se me permite a expressão..- Permito a Vossa Excelência todas as expressões, mas já percebi que Vossa Excelência pensa como alguém que está atrasado um século nas ideias e mesmo assim vai comprar uns binóculos para ver mais para trás; entra na biblioteca para ler livros sobre o Paleolítico..- Eu?.- Sim... Vossa excelência é o que o vulgarmente se chama de uma besta retrógrada. .- Bem, isso parece-me forte. Então, porque diz isso?.- Porque Vossa Excelência vê os animais e as árvores como os nossos colegas humanos da Idade Média os viam..- Não entendo o que diz Vossa Excelência. Entendo o que eu digo, e é esta a diferença entre duas pessoas. Cada um entende o que ela própria diz - e assim está bem, parece-me..- Pois sim..- Eu dizia e repito: há uma hierarquia da inteligência nos diversos elementos da natureza que tem que ver com o nível de audição..- Uma teoria..- Os seres vivos que escutam bem estão na hierarquia mais alta, os que escutam pouco ou mal estão no meio. E os elementos da natureza que são surdos estão no mais baixo da hierarquia natural. .- Quer dar exemplos?.- Eu grito para um animal, ele foge. Eu grito para uma planta, ela não foge, mas talvez sinta algo, deixe-me exprimir assim. E eu grito para uma pedra e nada: nem foge nem sente coisa alguma..- A síntese parece-me esta: para Vossa Excelência os seres da natureza mais inteligentes são os que ouvem a nossa voz, a voz humana, é isso?.- Ouvem e obedecem. Obedecer é a segunda parte do ouvir [e levanta o dedo para realçar a importante declaração]..- Talvez essa seja uma hierarquia ligeiramente... egoísta... não lhe parece?.- Desculpe, mas não ouvi a sua questão..- Bem, você não me ouve... e eu estou a ouvir para outro lado. .- Somos surdos mútuos, digamos. .- É isso mesmo..- No outro dia falei-lhe do poeta Alexandre O"Neill, recorda-se?.- Sim..- Pois ele tem ainda duas ou três frases que sintetizam pontos importantes..- Por exemplo?.- Por exemplo, esta que fala de um eventual sujeito, quem sabe, alguém que possamos até conhecer. Eis o que diz dele: «Passou a vida a encontrar a mesma mosca.».- Quem?.- Lá está. Isso, não sei. Mas há um sujeito qualquer, veja bem, que passou a vida a encontrar sempre a mesma mosca. Não é azar?.- É azar. .- De outro sujeito, também não identificado - e ainda bem, acrescento eu, dada a intimidade que é relevada por esta frase simples -, pois bem, de um outro sujeito o poeta escreve: «Não se lavou duas vezes no mesmo rio. Nunca se lavou.».- Que porcaria!.- Exactamente. Nem uma vez se lavou..- O famoso, clássico e filosófico: não se pode mergulhar duas vezes no mesmo rio porque o rio está sempre a mudar e o tempo passa e etc. e etc., a famosa reflexão profunda sobre o tempo é aqui, rapidamente, transformada numa reflexão sobre... a higiene..- ...ou a falta dela..- Exacto. Eis o sarcasmo elevado ao máximo..- Isso mesmo..- Tudo o que é sério tem dois lados divertidos..- E tudo o que é divertido....- ...tem dois lados sérios..- Pelo menos.