Quando o jornal chegou às bancas já estava velho: no momento que os portugueses reescreviam todas as manchetes dos jornais desse dia 25 de abril de 1974 e saudavam os militares nas ruas de Lisboa, um anónimo secretário provincial de Planeamento e Finanças revelava "o milagre de Angola", depois das contas de 1973 terem fechado com um "saldo de quase 600 mil contos"..Na semana anterior ao movimento dos capitães, nada nas páginas do Diário de Notícias - à época, uma voz oficial do regime do Estado Novo - apontava para o sobressalto que se viveu naquele "dia inicial inteiro e limpo", como escreveria Sophia, a poetisa de Abril..No estertor da ditadura, o Conselho de Ministros iniciou um "estudo de providências sobre a situação do funcionalismo" e aprovou o diploma que reorganizava o sistema de previdência da classe médica. Havia seis cisnes bebés na Avenida, a RTP abria com desenhos animados e decorria uma guerra sem quartel para as eleições - em França, que em Portugal as eleições não tinham quartel nem eram eleições a sério..As colunas de necrologia. A guerra silenciada.Aquilo que os portugueses viviam a sério era a Guerra Colonial, com frentes ativas em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, mas o leitor do DN estava mais bem informado sobre o que se passava por esses dias nos montes Golã, disputados pela Síria e por Israel, do que sobre o que se passava com os jovens portugueses nos três teatros de guerra..Em 13 anos de guerra, um milhão e quatrocentos mil homens foram mobilizados para a guerra e quase nove mil morreram. Segundo dados do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), morreram de várias causas 8831 militares portugueses, dos quais 4027 em combate, cerca de 23% do contingente "metropolitano" e 77% dos soldados recrutados nas próprias colónias. No DN, a dias do movimento dos capitães que reduziria a nada a ditadura, esta guerra era praticamente inexistente..As duas colunas de necrologia não nos contam nada sobre a guerra no mato em África. O Sr. José Maria Leitão, de 67 anos, natural de Idanha-a-Nova, morreu e o funeral, "a cargo da Agência Salgado", partiu da casa mortuária do Hospital Miguel Bombarda para o Cemitério do Alto de São João, em Lisboa. D. Maria do Cardal de Lemos Magalhães Lima, de 84 anos, solteira, filha do Dr. Jaime de Magalhães Lima e sobrinha do jornalista Dr. Sebastião Magalhães Lima, morreu em Eixo, pequena localidade de Aveiro. Ou a senhora D. Rosa Gonçalves Arieira, que faleceu em Carreço, Viana do Castelo, aos 72 anos, casada com o Sr. Domingos Pires Franco. Às breves necrologias, somavam-se três anúncios: um da Agência Magno, outro da Agência Salgado, em Almada, que se anunciava como "a maior organização", com "o único autocarro fúnebre automático do país", enquanto a firma S. Possante de Almeida, Lda., se apresentava como fabricante de "mármores, sepulturas para todos os cemitérios"..O perigo em África, avisou-nos o editorialista, em 18 de abril, são as "manchas vermelhas e amarelas, que alastram no mapa como nódoas de azeite", referindo-se à "guerra surda pela conquistas de zonas de influência" no "Continente Negro" pela Rússia e pela China. A guerra já se vê, seja surda ou aberta, nunca é a que os portugueses vivem pela teimosia de uma ditadura e que se encontrava num impasse..As qualidades viris dos portugueses. E o doutor que não o foi."Portugal em todos os quadrantes" é a página em que se arrumam as notícias "do Ultramar", para aí se explicar que "a formação de professores é o problema talvez mais difícil da expansão educativa" em Angola, de acordo com o Dr. Alambre dos Santos, secretário provincial de Educação, que anos antes andou pela comissão de censura de filmes. Já em Moçambique, na "reunião do Conselho do Governo", presidida pelo governador-geral de Moçambique, Eng. Pimentel dos Santos (os títulos antecediam quase sempre os nomes), foi estudado "o reforço da acção contra-subversiva no distrito de Vila Pery", sem mais dados ou informações..No dia seguinte, o mesmo Pimentel dos Santos, ao conferir posse aos novos governadores dos distritos da Beira e da Ilha, deixa um solene aviso no seu discurso longamente transcrito pelo DN: "Nesta hora de preocupações tão densas são postas à prova as qualidades viris dos portugueses de Moçambique.".É da Guiné que se sabe que os "militares comemoram o primeiro aniversário da chegada à província", com uma "homenagem aos mortos em combate" e regista-se que os "guinéus regressam às suas terras", depois de terem estado "deslocados temporariamente em território de países limítrofes", "retomando assim o seu ritmo normal de vida". "Só nos primeiros dias do corrente mês apresentaram-se às nossas autoridades dos postos de fronteira mais de quatro dezenas de cidadãos nacionais, designadamente 11 homens e 14 mulheres, acompanhados por 19 crianças", lê-se no breve despacho..Em 19 de abril de 1974, um despacho de Angola conta na primeira página que "Marcello Caetano agradece à Universidade de Luanda o título de Doutor 'Honoris Causa'". Trata-se de um telegrama enviado ao Senado Universitário de Luanda, sem que no entanto se saiba exatamente o seu conteúdo. Apenas se diz que o órgão académico vai reunir-se "dentro de dias" expressamente para conhecer esse agradecimento. Na página sete, na qual se lê a continuação da notícia, o DN cita o Diário de Luanda para revelar que é esperado o regresso do reitor da universidade à capital angolana (Fernando Real encontra-se em Lisboa) para se marcar "uma data para a cerimónia de doutoramento", uma vez que, "de acordo com as praxes académicas", este título só pode ser "entregue pessoalmente". Nunca chegou a acontecer tal cerimónia..As eleições francesas e a sondagem da secreta.Por estes dias, a caminho do 25 de Abril de 1974, o DN fervia na sua primeira página com as eleições presidenciais francesas. Giscard d'Estaing prometia "justiça e segurança para todos" e "o debate Delmas-Mitterrand foi uma lição de esgrima eleitoral". Tudo aquilo com que os portugueses só poderiam sonhar. Na descrição do jornal, estes eram os "três contendores com perspetivas sérias de vitória": Valéry Giscard d'Estaing, 48 anos, era apresentado como ministro das Finanças e leader do Partido Republicano Independente; Jacques Chaban-Delmas, de 59 anos, era descrito como o "candidato oficial gaullista", e François Mitterrand "representante do grupo comunista-socialista"..Giscard aparecia como favorito e Chaban-Delmas fazia uma "viagem de propaganda eleitoral" para "recuperar a popularidade perdida a favor do primeiro. No dia 21, o DN diz que há "preocupação nas hostes gaullistas", com um apelo oficial da UDR a favor do seu candidato, depois de surgirem notícias de que um grupo de notáveis gaullistas liderado por Jacques Chirac preferiria Giscard d'Estaing..Dois dias depois, rebentava "com fragor a 'bomba' Chirac", como explicava na primeira página o DN, questionando-se: "Manobra para afastar Chaban-Delmas?" A bomba era a revelação feita pelo Ministério do Interior, tutelado por Chirac, de uma sondagem dos serviços secretos franceses (leu bem) que revelava que o candidato oficial da direita não tinha hipóteses de vencer. Estas divisões à direita "fortalecem a posição da esquerda", avisava o DN no tal jornal que chegava já velho às bancas, no dia 25..A sondagem da secreta tinha razão: a 5 de maio, menos de um mês depois de ter arrancado a campanha eleitoral, Giscard é o segundo mais votado na primeira volta, com 32,60% dos votos, atrás de Mitterrand (43,25%), e muito à frente de Chaban-Delmas (15,11%). Na segunda volta, em 19 de maio, as posições invertem-se e Giscard é eleito presidente da República. Mitterrand vinga-se em 1981..Agustina, Pompidou e o mistério da morte.As eleições em França tinham sido antecipadas por causa da morte de Georges Pompidou, presidente em exercício, a quem faltavam dois anos para cumprir o mandato. É o relato feito do último Conselho de Ministros presidido por Pompidou, revelado num texto de Jean Mauriac para a France-Presse, que permite à escritora Agustina Bessa-Luís escrever uma crónica, na capa do DN, intitulada "O Mistério da Morte"..Para a autora de A Sibila, publicado 20 anos antes, "o que sobressaía na atitude de Pompidou", naquele texto, que tinha provocado "alguma indignação" por França, "era uma intensidade quase optimista própria daquele que se sabe ameaçado". Segundo Mauriac, naquele último Conselho de Ministros, Pompidou disse: "Tudo isto acabará bem. Enfim, havemos de ver..." Agustina recupera o que um dos seus ministros murmurou: "Ele quer respeitar o mistério da morte." E mais à frente dá conta: "O Conselho de Ministros sabia que estava ali convocado para prestar as últimas homenagens à vida biográfica do seu presidente. E este, por respeito a essa situação, aparenta coragem - também tristeza.".Ao silêncio que envolveu os quase dois anos em que esteve doente, seguiu-se uma "indiscrição" sobre esse tempo, depois da sua morte. Questionava-se Agustina: "Porquê censurar o silêncio? Ele é dom de magnanimidade. A magnanimidade do doente e do homem são. Ambos têm a sua sacralidade, independentes das interpretações que usam para dominar a própria experiência as pessoas de boa vontade.".A falta do separador central. O engarrafamento preocupante.Outra guerra era a das estradas portuguesas. Sem dados para esse ano de 1974, as notícias davam conta do "sangue no asfalto": "Registou-se mais um acidente na auto-estrada do Estoril por falta do separador central", alertava o DN, para completar com a informação de que "quatro pessoas ficaram gravemente feridas". Em 1975 (não há dados do ano anterior) registaram-se 33 109 acidentes com vítimas, contabilizando-se 40 576 feridos e 2676 mortos - para cerca de 125 mil veículos matriculados..Sem registo de mortos, o DN de 18 de abril publica uma foto de um "espetacular choque entre um autocarro e uma ambulância militar". Depreende-se que o acidente é em Lisboa, mas nada é dito sobre o local exato. Fica a saber-se que a ambulância "transportava um doente para o hospital" e que, por causa do acidente com o autocarro, "tombou sobre a esquerda".."O enfermo sofreu algumas equimoses, sem gravidade, ficando internado devido à enfermidade que o ataca. O desastre não teve, felizmente, consequências trágicas, verificando-se contudo danos apreciáveis nos veículos e grandes embaraços no tráfego, que dificilmente foi, depois, normalizado. O engarrafamento, mais agravado pela forçada paralisação dos elétricos, chegou a ser preocupante.".A vaca roubada nos classificados. E a "dactilógrafa bem habilitada".Nas páginas de anúncios classificados é também um outro país que se descobre. Multiplicam-se pedidos para profissões em desuso - paquetes, pracistas do ramo alimentar, ajudantes de guarda-livros, datilógrafas. Há uma "vaca roubada", descrita como "torina 6 anos, cheia 15 dias parição". João Carreira Júnior Valinho pede informações para o número de telefone 62127, de Alcácer do Sal..A "dactilógrafa", como mandava o anterior acordo ortográfico, escrevia-se com "c" e teria de ser "qualificada c/ boa apresentação", "para escritório de advogados", prometendo-se "bom ordenado e regalias sociais" - tudo neste anúncio era no feminino. Noutro anúncio para "dactilógrafa", esta terá de ser "bem habilitada, teclado nacional, curso comercial ou equivalente". Quem "necessita" é uma "importante Agência de Viagens em Lisboa" e garante-se "entrada imediata"..Há quem anuncie "4.ª classe. Exames rápid. [sic]. Só 700$." - sem se perceber o que se vende. Ou este, que hoje seria crime: "Marfim. Compram-se dentes." E também se vendem "marquises, em alumínio anodizado", que "se executam com acabamento total". A prisão das varandas já vinha a caminho..Nada comparável ainda assim ao que o Eurocabe - Instituto para Novos Cabelos tinha para oferecer: "Uma nova personalidade em quatro horas." A prova irrefutável estava umas linhas acima, nas duas fotografias de Emílio: numa, calvo, de olhar quase ameaçador, na outra, de abundante e forte cabeleira e um sorriso tímido. "Há dois anos que o Sr. Emílio Vilar nos está profundamente grato." Ou na descrição do anúncio, "há precisamente dois anos", Emílio "era calvo e não existiam sombras de dúvida acerca da sua idade" e, "tanto na vida social como nos negócios, começavam já a considerá-lo uma pessoa idosa". "Sentia-se deslocado" e foi visitar o instituto: "Tratámos imediatamente de modificar o seu aspeto", com um "entretecido de cabelos", avisa a publicidade, com a conclusão óbvia: "De há dois anos para cá o Sr. Emílio Vilar aproveita plenamente todas as vantagens que lhe confere o seu aspeto jovem." Só não diz quais..O filme mais discutido de Lisboa. E o Tintim, de Hergé."Sensacional", "obra admirável, diamante intacto", Hiroshima, Meu Amor estreia-se "hoje", no dia 25 de abril, às 21.45, no cinema Londres. Para maiores de 18 anos, esclarece o anúncio. São páginas de fazer inveja a qualquer jornal deste século XXI: em 1974, multiplicavam-se anúncios do cartaz de espetáculos, de filmes, peças de teatro e de revista, e replicavam-se todos os dias..A 18 de abril prometia-se outra "sensacional estreia" de "mais de 50% de números novos", na "fabulosa revista Ver, Ouvir e... Calar!..." O "elenco de vedetas", liderado por Salvador; Henrique Santana e Ivone Silva, era pontuado pela "atração nacional Cidália Moreira" e "a grande atração francesa Bernardette Stern", atriz que deixou um rasto breve numa dúzia de filmes. Haveria "novos hilariantes episódios e quadros", com títulos como "O festival da canção no manicómio", "Conserva a Porcalhota limpa!" ou "Miss James Boa", neste "enorme êxito sempre renovado!"..Nos filmes em exibição não se anunciavam os cortes da censura (que os havia, e muito), pesava-se na classificação etária para maiores de 18 e manter olhares jovens afastados dos grandes ecrãs e só a adjetivação não parecia estar em crise. "Alegre, cruel, louco, anti-conformista, comovente e livre..." prometia-se para O Convite, um filme de Claude Goretta, "uma festa fabulosa" que ganhou o Grande Prémio do Júri em Cannes em 1973, ia na oitava semana de exibição e estava classificado para maiores de 18 anos. Malteses, Burgueses e às Vezes estava em exibição no Avis e repetia a dose às 00.30 no Estúdio 444, Jacqueline Bisset contava-nos os seus Segredos Proibidos no Cinema Castil, Clint Eastwood era Harry: o Detective em Acção, no Monumental, e "a obra-prima de Nagisa Oshima", Cerimónia Solene, estava na quinta semana no Satélite. E havia Um Homem de Sorte, que era o "mais fantástico sucesso de 74, no filme mais discutido de Lisboa!"..Nas páginas do DN, Saint-Bray apresentava o seu folhetim Dúvidas de Amor e Hergé trazia Tintim, tal e qual assim escrito, no livro A Ilha Negra em tiras diárias para os leitores. Estamos já no último terço da aventura, quando o intrépido repórter quer ir até à ilha, mas o pescador tem medo: "Para a Ilha Negra? Ai que fico sem barco!".As aulas de trabalhos manuais na TV. E a meditação a fechar.No dia 25, se tudo tivesse decorrido normalmente, a RTP teria iniciado a sua emissão em dia de semana às 12.45 com desenhos animados, de acordo com a agenda do DN desse dia. A tarde era preenchida com o "ciclo preparatório TV", das 14.40 às 19.00, com aulas de Língua Portuguesa, Desenho, Educação Física, Francês, Ciências da Natureza, História e Geografia de Portugal e Trabalhos Manuais. Às 19.30 havia o Telejornal, que duraria dez minutos, que anteciparia o programa Ao Longo da Vida e a transmissão do jogo de "Handebol de 7" entre o Benfica e o Vitória de Setúbal para o Campeonato Nacional da I Divisão. Voltaria o Telejornal, para mais meia hora de informação e, depois de um programa com José Calvário como convidado, a emissão terminava com mais um Telejornal e "meditação e fecho"..Nada disto aconteceu: nessa quinta-feira, a emissão arrancou dos estúdios do Porto às 12.34 com a mira técnica, a explicação da programação e a exibição de três filmes e várias interrupções longas, com o ecrã a "negro", até à hora do ciclo preparatório TV, que arrancou pelas 14.41..A emissão teria vários slides dos estúdios do Porto, e depois passava em idêntico registo para os estúdios de Lisboa, de onde se mostrava um concerto de Beethoven e outro de Frederico de Freitas, ao fim da tarde. Às 20.15, Fialho Gouveia anunciava o programa seguinte "enquanto aguardam os representantes da Junta de Salvação Nacional". Depois de um programa sobre Michel Giacometti, de um concerto de Vinicius de Moraes e de um telejornal, lá chegava pela 01.23 da manhã a apresentação da junta, feita por Fialho Gouveia. Por fim, às 01.48, o presidente da Junta de Salvação Nacional, o general António de Spínola, fazia uma declaração ao país. Nesse dia não houve meditação antes do fecho..Os profetas da desgraça. Um enorme tiro à água.Talvez tenha sido o que faltou ao articulista do DN, no dia 24 de abril: meditar bem sobre o que ia escrever. Nesse dia, o editorial disparou um enormíssimo tiro à água, num texto não assinado intitulado "Balas de papel". Desconhecendo o que dali a horas aconteceria no país, atira-se um conjunto de palavras de grande exaltação nacional..Para o articulista, "quando menos se espera certa imprensa estrangeira, obedecendo a um sinal invisível, encarniça-se contra nós, avoluma acontecimentos, empresta-lhes significado e importância que não têm, profetiza desgraças, imagina desenlaces, como se o fim do regime estivesse à vista ou as figuras que o representam houvessem deixado de merecer a confiança do país"..No mesmo dia em que estas palavras foram publicadas, João Paulo Dinis lançava aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa a senha combinada para preparar as tropas para sair. "Faltam cinco minutos para as vinte e três horas. Convosco Paulo de Carvalho com o Eurofestival 74: E depois do Adeus." Passados 20 minutos da meia-noite foi a vez de Paulo Coelho anunciar no programa Limite da Rádio Renascença a canção de José Afonso Grândola, Vila Morena, enquanto Leite de Vasconcelos lia os primeiros versos: "Grândola, vila morena,/ Terra da fraternidade,/ O povo é quem mais ordena,/ Dentro de ti, ó cidade." E estas foram as balas certeiras.