Sete meses depois de as forças etíopes terem expulsado os rebeldes tigrínios da capital do Tigray (ou Tigré), no norte do país, estes reconquistaram o controlo de Mekelle e de quase toda a região. O governo de Abiy Ahmed alegou primeiro que tinha decretado um cessar-fogo e depois que a cidade não era assim tão importante no cenário global. Independentemente de qual é o cenário político, milhares de pessoas já terão morrido (há quem fale em 50 mil), mais de dois milhões já fugiram e 400 mil, segundo as Nações Unidas, enfrentam a fome.."O cessar-fogo no Tigré é um eufemismo", disse ao DN o professor Manuel João Ramos, investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL e antropólogo com grande conhecimento da Etiópia. "Usaram a expressão para não admitir que os objetivos militares e políticos a que se tinham proposto falharam completamente", acrescentou, lembrando que é importante ter em conta que a contraofensiva das forças leais à Frente de Libertação do Povo de Tigray (TPLF, na sigla em inglês) acontece depois das eleições (ainda não se sabem os resultados) e antes do início da época das chuvas, quando os rios enchem e os movimentos militares ou outros se tornam extremamente difíceis..Quando chegou ao poder em 2018, Abiy Ahmed prometeu acabar com as velhas divisões que existem na Etiópia, um país formado por regiões semiautónomas que seguem as linhas das divisões étnicas. Oromos (35%), amaras (27%) e tigrínios (6%, mas com tradição de anos à frente do poder político, económico e militar) são as mais importantes. O primeiro-ministro dissolveu a coligação multiétnica que governava o país, acusando ex-funcionários de corrupção e expulsando importantes membros do TPLF, e formou o Partido da Prosperidade, que nunca teve o apoio dos tigrínios..Estes também se ressentiram do acordo de paz com a Eritreia (que valeu o Nobel a Abiy Ahmed em 2019), país com o qual Tigray faz fronteira e contra quem lutaram - "os tigrínios não vão descansar enquanto não tirarem o Isaías Afwerki do poder e já o disseram", lembrou o professor Manuel João Ramos, numa referência ao presidente da Eritreia, que liderou a luta pela independência da Etiópia e está no poder há quase 30 anos..Em setembro de 2020 a tensão voltou a subir quando os tigrínios desafiaram o primeiro-ministro e avançaram para eleições para o Parlamento regional, que Abiy Ahmed tinha adiado por causa da pandemia de covid-19. O TPLF reclamou vitória, mas Adis Abeba declarou as eleições ilegais e ameaçou cortar o financiamento. A guerra começou dois meses depois quando, após um alegado ataque das forças leais ao TPLF contra uma base etíope em Mekelle, Abiy Ahmed ordenou uma ofensiva contra o grupo e três semanas depois instalou um governo alternativo na região. As tropas governamentais foram desde então acusadas de vários massacres, junto com as tropas eritreias, que entretanto vieram em apoio da Abiy Ahmed. As Forças de Defesa do Tigray (TDF), nome pelo qual são conhecidos os rebeldes tigrínios, também já foram acusadas de atrocidades..Apesar de ter instalado um governo alternativo em Mekelle, o executivo etíope nunca chegou a controlar a região, com os rebeldes a agruparem-se e a contar com o apoio da população local - que festejou agora quando eles reconquistaram a capital. A contraofensiva, batizada de Operação Alula - "o Ras Alula era um governador do Tigré que para os tigrínios era um herói mas que, para os amara, é visto como um traidor, logo ter uma operação Alula não é inocente", explicou Manuel João Ramos - foi lançada por altura das eleições de 21 de junho, que devem dar um novo mandato a Abiy Ahmed.."Estas eleições são uma fantochada", refere o investigador do ISCTE-IUL, lembrando que a maioria da população é oromo e os partidos oromo optaram por não ir a votos. Os tigrínios também não participaram. "Isto não são eleições gerais, são eleições amara. É um referendo. O que está em causa é saber qual a popularidade que Abiy Ahmed tem entre os amaras", explicou..O primeiro-ministro é oromo, mas é casado com uma amara (são ambos cristãos pentecostais) e "a sua tentativa de legitimidade vem do nacionalismo amara" mas tem havido mesmo dentro deste grupo manifestações contra o Partido da Prosperidade. "Estou curioso para ver qual é a relação de forças entre a oposição amara e o Partido da Prosperidade", admitiu Manuel João Ramos, acreditando que ele já deu tudo o que podia dar aos amara. "E portanto está a prazo", referiu. Ainda não há data para se saber o resultado das eleições..A contraofensiva do TDF deu frutos esta semana, com o controlo de Mekelle a voltar para as mãos dos rebeldes tigrínios. A resposta do governo etíope foi dizer que tinha havido um cessar-fogo, explicando depois que o controlo do Tigray já não é importante. O porta-voz Redwan Hussein disse que os rebeldes já "não são mais uma ameaça existencial ao bem estar da nação" e insistiu que a Etiópia precisa de se focar noutros desafios à sua segurança"..Para o especialista na região isso está longe de ser verdade, vendo estas declarações como "uma admissão de que a soberania sobre o território não é absoluta e que na cabeça deles o Tigré está perdido". Manuel João Ramos defende que há neste momento três frentes de batalha para o TDF, sendo que todas representam uma ameaça para a Etiópia. A primeira é com a Eritreia, país com o qual o Tigray faz fronteira, com a inimizade antiga a ser reforçada pelo facto de tropas eritreias terem ido em apoio a Abiy Ahmed. "Não me admirava que entrassem em território eritreu, porque a maioria das tropas fugiu ou partiu", indicou o investigador..As outras duas frentes de batalha, a oeste e a sul, são contra os amaras - a região Amara faz fronteira com o Tigray e conquistou parte do seu território, não tendo intenção de sair. "Os tigrínios não querem prescindir desse território, que lhes dá um balão de oxigénio com o Sudão, que tem feito um jogo silencioso com o governo etíope", explicou Manuel João Ramos. "O Sudão tem jogado com a possibilidade de dar apoio logístico aos rebeldes, num braço de ferro com o governo etíope", tendo também aproveitado para reclamar a soberania de uma região alvo de disputa há mais de um século.."Os amara exigem defender a posição da Etiópia face ao Sudão, que tem de facto legitimidade internacional para reclamar as terras que reclamou", disse o antropólogo. "Mas há uma grande possibilidade de confronto fronteiriço com o Sudão ligada ao enchimento da barragem, a que tanto o Sudão como o Egito se opõem terminantemente", acrescentou. Em causa, a Grande Barragem do Renascimento Etíope, no Nilo Azul, o grande projeto hidroelétrico que é um orgulho para os etíopes e gera tensão com os países que dependem do rio para a sua sobrevivência..No meio do conflito com o Tigray, Abiy Ahmed deparou-se também com a mudança na Administração nos EUA, com a chegada de Joe Biden à Casa Branca. "Essa mudança enfraqueceu Abiy Ahmed", explicou o antropólogo. "Há décadas que a Etiópia é o principal beneficiário da ajuda financeira norte-americana em África. Essa ajuda continua a fluir, mas o secretário de Estado [Antony] Blinken fez questão de criticar o governo etíope e de tornar a ajuda norte-americana condicional, por causa dos relatórios de massacres, violações e ataques aos direitos humanos", acrescentou..susana.f.salvador@dn.pt