A guerra das marcas pelas futuras estrelas. Quanto vale o talento aos 8 anos?
Joga no clube que lançou Pelé (Santos) e bateu recordes de precocidade na publicidade e no Brasil aos 8 anos de idade. Chama-se Kauan Basile tem um contrato com a Nike desde janeiro, mas o mundo ainda vai ter esperar uns anos para saber se o talento se materializa numa certeza do futsal ou do futebol - no Brasil os miúdos começam no futsal para ganhar técnica, mas muitos acabam nos relvados.
Até agora os mais precoces também era dois futsalistas. David Carmo, filho do ex-Belenenses Edimílson, assinou um contrato semelhante com a Puma em 2018, quando tinha 9 anos e jogava futsal no Santos. E Willian Nascimento, do futsal do Flamengo, tinha 10 anos quando em agosto de 2020 chegou a acordo com a Nike. Já Pedro Padula (Puma), Rodrygo (Nike) e Arthur Lima (Adidas) tinham 11 anos quando assinaram o primeiro contrato.
O acordo de Basile é também um recorde para a Nike. A marca não o confirma, mas o antigo recorde era de Shane Kluivert. O filho do antigo avançado Patrick Kluivert assinou com a marca desportiva em 2017, quando tinha 9 anos e jogava no PSG.
O menino Kauan Basile bate ainda a marca de precocidade de estrelas do futebol como Messi (tinha 15 anos quando deu esse passo na carreira) ou Neymar (13 anos). Já Cristiano Ronaldo rubricou o seu primeiro contrato com a Nike em 2003, com 18 anos - hoje tem um contrato vitalício.
Em Portugal o recorde é de Alfredo Silva e da Adidas. A antiga promessa portuguesa era visto como o novo Quaresma e assinou um contrato com a marca desportiva alemã quando saiu do Sporting para jogar no Málaga em 2013. Alfredo tinha 12 anos e recebia 12 mil euros por ano em roupa durante três anos. Dava para vestir e calçar a família toda (pais e três irmãos). As chuteiras eram um acordo à parte. Sempre que saía um novo modelo ele recebia dois ou três pares. Era importante que ele tivesse sempre a última novidade e dessa forma ajudar a publicitar os produtos.
Segundo o contrato a que o DN teve acesso, o jovem estava proibido de vestir outras marcas até ao fim do contrato (2016), que contemplava prémios consideráveis por objetivos. Por cada jogo pela seleção num campeonato europeu receberia 500 euros, se fosse o melhor jogador do europeu recebia mais 3 mil e se fosse campeão da Europa e/ou mundial pela seleção portuguesa recebia mais 3 mil.
Hoje Alfredo anda longe dos grandes palcos projetados em 2013. Duas lesões graves deitaram o seu sonho e o investimento da Adidas por terra. Mas o risco compensa. "Podem acertar dois em dez que já estão no lucro", segundo explicou ao DN, o especialista em marketing desportivo, Daniel Sá.
O endorsement - técnica para identificar um atleta-talento do interesse das gigantes do vestuário desportivo e não só - é uma prática muito em voga nos EUA, onde se revelou uma das principais armas das marcas. Desde que Michael Jordan assinou com a Nike em 1984, que as marcas sabem que a fórmula funciona - já deixou de jogar há quase 20 anos e continua a ser uma marca poderosíssima dentro da própria marca Nike.
As marcas continuam a apostar em atletas consagrados, mas perceberam que o talento projetável a vários anos é mais proveitoso. Até porque os consagrados custam dinheiro. O modus operandi mudou nos últimos 30 anos e uma das fórmulas de sucesso é investir nos talentos do futuro. Como é que isso é feito? "Quem deteta o talento não são as marcas, os clubes e os treinadores há muito que conseguem identificar com elevado grau de eficácia os grandes talentos do futuro e as marcas acabam por se apropriar desse trabalho de prospeção e sinalizar os jovens talentos", segundo Daniel Sá.
São contratos com risco. Um potencial talento com 10 ou 11 anos pode não vir a ser uma estrela no futuro, mas os contratos preveem isso e são habitualmente contratos com cláusulas que fazem os valores crescer conforme a extensão da ligação e por vezes até terminam mediante o não cumprimento de determinados pressupostos.
DestaquedestaqueDaniel Sá: "Mesmo que invistam em várias dezenas de miúdos, o valor é baixíssimo para os orçamentos de marketing que têm. É mesmo residual e quase ridículo. Podem acertar dois em dez que já estão no lucro."
"Pode parecer estranho que uma marca assine com uma criança, porque aos 8, 9 ou 10 anos é uma criança, mas o grau de risco das marcas é relativamente baixo. Para as principais marcas, mesmo que invistam em várias dezenas de miúdos, o valor é baixíssimo para os orçamentos de marketing que têm. É mesmo residual e quase ridículo", garante o também diretor executivo do Instituto Português de Administração de Marketing (IPAM).
Se Michael Jordan abriu o caminho em 1984, as redes sociais são o eldorado das marcas. Desde que existe Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, etc., que os atletas deixaram de se mostrar apenas em competição. As pessoas querem saber o que os ídolos fazem e isso gera interesse. Eles alimentam, o público pede mais...
"As marcas procuram estrelas, mas isso não quer dizer necessariamente os melhores jogadores. A personalidade é um fator muito importante e por isso as marcas fazem muitas análises comportamentais dos miúdos, investigam a família, os valores e princípios para não correrem riscos de ficar associadas a um problema. Nos EUA este trabalho é tão vasto e importante que existem empresas especializadas na intermediação entre as marcas e os talentos", explicou Daniel Sá, lembrando que o futebol domina na Europa e na América do Sul, mas nos EUA "é uma indústria poderosíssima" e estende-se ao basquetebol, ao basebol, ao futebol americano e até ao hóquei no gelo.
Há uns anos um miúdo de 5 anos foi notícia pelo talento para o basebol e logo "amarrado" por várias marcas. Em Portugal o fenómeno é quase um exclusivo do futebol e no Brasil é extensível ao futsal.
"O facto de ser um mercado sem leis ou regras leva a que seja território de guerra permanente entre marcas ou assaltos legais", segundo conta o especialista, lembrando que, por essa mesma razão os contratos quase nunca são em dinheiro vivo até aos 16 anos: "O pagamento é feito em géneros, material da marca. E assim se alimenta uma relação até à realização de um contrato profissional do ponto de vista desportivo."
Estamos a falar de miúdos e de formação. Como se explica a um miúdo que recebe um sumo e uma sandes que o colega tem um contrato com a Nike, a Adidas ou a Puma no valor de centenas de euros por mês? "Esse é um dos fatores da excessiva mercantilização do futebol. Em 40 anos passamos de um futebol quase amador para um extremo de profissionalismo, onde tudo se compra e tudo se vende. O desporto é muito desigual, uns ganham milhões, mas a maior parte não."
Os genes não enganam. Filho do ex-jogador do Corinthians, Andrezinho, e bisneto de Nena, vice-campeão mundial pela seleção brasileira em 1950, Kauan joga nos sub-9 do Santos, clube que revelou talentos como Pelé, Neymar e Rodrygo. É apontado como o brasileiro mais jovem de sempre a assinar um contrato com uma marca desportiva. O contrato com a Nike é de três anos e renovação automática por mais dois. O valor ficou em segredo, como sempre.
A imagem do menino a assinar um contrato com a gigante do vestuário desportivo tornou-se viral e colocou-o na ribalta. O momento assim o exigia. "É talento puro! É futebol na alma, no coração e no DNA! Fazendo história desde muito cedo", anunciou há semanas a empresa Mengoni Sports, que o agencia a ele e ao irmão, Lucas Yan, de 15 anos, que assinou um acordo idêntico quando tinha 11 anos.
Kauan começou a chamar a atenção do olho clínico do pai nos jogos com os amigos. Quando o filho mais velho assinou com o Santos, Andrezinho pediu "um teste" para o filho mais novo que tinha 6 anos. Era novo de mais, não havia campeonato ou jogos para a faixa etária dele, mas o talento revelado era tal que obrigou o treinador a colocá-lo junto dos mais velhos. Apesar de só ter 8 anos, Kauan tem todos "os atributos de um jogador excecional", segundo o pai, claro!
isaura.almeida@dn.pt