A personagem central do seu romance Guardador de Almas é um coveiro do cemitério da Saudade, situado no bairro do Cascalho. A acção passa-se entre Portugal e Angola. Que leva um escritor, no primeiro livro, a deitar mãos a um tema difícil como a guerra colonial?.Tenho de confessar que quando pensei em escrever um livro, não soube logo que o tema seria a guerra colonial. Quis escrever uma história diferente de uma maneira diferente. O meu objectivo era desenhar uma personagem a partir da sua consciência, ou do seu subconsciente. Uma figura cheia de medos e traumas que vivesse perseguida ou assaltada por imagens que não consegue apagar. E aí, sim, surgiu a guerra de África, que continua mal explicada e pouco a pouco a pouco se esquece. Dela a minha geração pouco ou nada sabe, não tendo culpa disso. Quando comecei a trabalhar, convivi com a geração que participou na Guerra. Todos os dias me contavam histórias, sobretudo as coisas boas, a saudade....De onde nasce a personagem do coveiro/guardador de almas?.As personagens têm aquela coisa boa que é ganharem vida e crescerem. A personagem do coveiro - guardador de almas - nasce da riqueza de sentimentos que tal profissão poderia proporcionar ao livro. Passa, contudo, a exercê-la por ser um ex-combatente com uma deficiência, sequela que traz de Angola. Os traumas da guerra acabam, entretanto, por tornar-se mais fortes do que a vida que poderá ter como coveiro em que a morte tem outro significado. Advém daí a importância que a guerra colonial ganhou no romance..História de um amor também....Sim, é em Angola que o António Joaquim dos Santos se apaixona e continua apaixonado pela mulher que lhe bateu à porta com um filho nos braços, um filho que tem o nome dele, que ele sabe que é dele, que continua a querer encontrar, embora até pense que já não os reconheceria..Os mortos, na ligação estabelecida entre coveiro e guardador de almas, surgem neste livro em duas perspectivas a do quotidiano e da guerra?.Sim, o coveiro tenta encontrar subterfúgios para se abstrair dos mortos do quotidiano, mas é inevitável o voltar às imagens do passado, aos fantasmas..Guardador de Almas é não só um romance fragmentário como torrencial na forma de construção. Criou-o assim para reconstruir memórias?.Gosto do torrencial. Guardador de Almas foi pensado e repensado, escrito e reescrito para ser assim. Sempre ouvimos dizer que a velocidade mais rápida é a do pensamento - embora não seja totalmente verdade porque se forma à velocidade dos impulsos eléctricos que se conhece e se mede muito bem. Todos pensamos e falamos com um turbilhão de imagens e ideias simultâneas, o narrador está na cabeça do Santos, é a cabeça do Santos. Tentei escrever ao ritmo da formação das imagens ou das referências..Quis escrever um livro contra o esquecimento?.Centrei-me sobretudo na personagem principal, o coveiro, embora a guerra colonial esteja cada vez mais esquecida. Por vezes temos mesmo a sensação de que ainda não nos contaram tudo sobre ela. Provavelmente sabemos mais coisas sobre o Vietname do que sobre África, e estivémos lá..Sobretudo as gerações mais novas....Em tempos, senti que quase acusavam a minha geração de no 25 de Abril só ter 7 ou 8 anos, e não saber nada sobre essas angústias, de não as ter vivido. No fundo, o nosso conhecimento das coisas vem por interposta pessoa, pelos livros ou pelos filmes, que são poucos. Como tive curiosidade em relação a este tema do ponto de vista histórico, não deixei de fazer leituras que saciaram, de algum modo, a minha curiosidade. No capítulo em que falo do 25 de Abril, não será por acaso que uso o registo presente..Este livro integra a categoria das obras literárias em que os processos coloniais desempenham um papel determinante. É a tentativa de apropriação criativa da história?.Sim, a história pode ser ficcional, há bons exemplos disso. Aqui trata-se de abordar os traumas vividos ainda hoje por milhares de portugueses..Como lhe chegou às mãos um material literário que não viveu?.Foi a minha curiosidade sobre o tema, que pesquisei. Há alguns livros interessantes sobre esse período da história portuguesa. Depois, passa pelo romance toda a questão humana..O sociólogo Boaventura Sousa Santos define o colonialismo português como semiperiférico, incapaz de colonizar efectivamente, vulnerável às pressões externas por parte das potências mundiais hegemónicas. Que quis reter dele, do colonialismo, neste seu livro?.O livro não quis entrar por esse campo, não pretende retirar quaisquer ilações históricas, políticas ou sociológicas sobre o colonialismo. Sempre ouvi dizer que "venderam-nos África como nossa, mas África nunca será nossa, nunca a compreenderemos". Estivémos lá a defender interesses económicos. Não quis interpretar a história, mas relatar a infelicidade actual dos infelizes da época..Preferiu tratar a vivência humana?.Sim, e a sua envolvência o drama das famílias que viam os filhos embarcarem para África, os feridos em combate, os sonhos dos miúdos de 20 anos perdidos, o drama de se voltar ferido e de ter de arranjar emprego. A minha personagem tornou-se coveiro pelo facto de sofrer uma deficiência física..O discurso do seu romance instaura um quadro de atemporalidade. Funcio- na como uma partitura?.Se pensarmos em partitura como a simultaneidade de um conjunto de notas, que se tocam a um tempo embora por dois ou mais instrumentos diferentes, neste caso dois, quotidiano e o passado, talvez. A atemporalidade, por outro lado, é propositada. Cronologicamente tive muito cuidado na conjugação de todas as datas e momentos. Por exemplo, os primeiros ataques a postos portugueses em Angola acontecem, em 1968, em Caripande, no saliente de Cazombo. Todas as acções consequentes podem, facilmente, com um pequeno exercício, ser datadas. Num dos capítulos comemoram-se, por outro lado, os 26 anos do 25 de Abril..Que espera dos seus leitores? E as palavras servem-lhe para quê?.Que encontrem nas entrelinhas a metade do livro que não escrevi e que, obviamente, dele tirem prazer. Quanto às palavras, tornaram-se num vício. É um prazer desenhá-las com o aparo da caneta, servem para engrossar os ventos.