A fronteira quebrada no rio Bug

O afluxo de refugiados ucranianos à Polónia é um êxodo sem precedentes na história da Europa. A sua escala e a resposta maciça da sociedade polaca, que nove meses depois da invasão russa da Ucrânia acolhe mais de três milhões de ucranianos, apanhou todos de surpresa.
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Alguns dias antes da guerra na Ucrânia, com a situação instável na fronteira Polónia-Bielorrússia forçada por imigrantes trazidos pelo regime de Minsk de vários países do mundo, ressoava na opinião pública polaca o debate sobre a capacidade de a Polónia aceitar refugiados. Os peritos no fenómeno das migrações enganaram-se. Numa entrevista publicada pelo semanário Krytyka Liberalna, a 22 de fevereiro, o professor Maciej Duszczyk, do Centro de Estudos sobre Migração da Universidade de Varsóvia, questionado se a Polónia seria capaz de receber um milhão de refugiados da Ucrânia, disse: "Definitivamente não. O exemplo mais simples: vejamos o que aconteceu na Alemanha em 2015 e 2016, quando cerca de um milhão de refugiados acabou de chegar ao país. Os Estados alemães não conseguiram lidar com tal afluência de pessoas. A sociedade civil tinha de ser envolvida. E isto num país duas vezes maior que o nosso, com uma Administração muito mais eficiente e uma forte autoridade local descentralizada." No texto publicado apenas horas antes da invasão russa, Duszczyk previa que, no caso de uma vaga de refugiados, a Polónia poderia acolher entre 100 mil e 150 mil. Sublinhava que viveriam "em condições dramaticamente más". A vida desenhou um cenário diferente.

De acordo com as autoridades polacas, entre 24 de fevereiro e 11 de novembro chegaram à Polónia 7,7 milhões de vítimas da invasão russa. Durante o mesmo período, 5,8 milhões de pessoas seguiram em direção oposta. O governo de Mateusz Morawiecki estima que desta onda de refugiados estejam atualmente a viver na Polónia cerca de 1,9 milhões de ucranianos e que 1,4 milhões terão encontrado alojamento em casas de famílias. Os primeiros refugiados a chegar receberam alojamento principalmente em pavilhões desportivos e em instalações pertencentes à Igreja Católica. O facto que os ucranianos chegados serem na sua maioria cristãos ortodoxos não constituiu um problema. A ajuda foi também direcionada para áreas ocupadas pela Rússia -- só durante as primeiras quatro semanas da guerra a Igreja Católica polaca enviou 147 camiões e 180 outras grandes viaturas para a Ucrânia, transportando principalmente alimentos, num valor total de 5,5 milhões de euros. Nas semanas seguintes, o apoio à população ucraniana intensificou-se por parte de entidades tanto religiosas como seculares, mas também de instituições governamentais, autarquias e ONG. As autoridades de Varsóvia estimam que a ajuda fornecida pelo Estado polaco aos refugiados tenha excedido os mil milhões de euros, dos quais 800 milhões foram desembolsados a partir de um fundo especial do governo. Segundo o chefe do Instituto Polaco de Economia (PIE), Piotr Arak, mais de 70% dos polacos adultos já se juntaram na ajuda aos refugiados e durante os três primeiros meses do conflito os cidadãos doaram para este fim dois mil milhões de euros. "Graças a uma decisão sem precedentes das autoridades polacas, foram concedidos aos ucranianos os mesmos direitos que os polacos têm, com exceção da possibilidade de votar", observou Arak. Estimou que, se forem incluídas as pessoas da anterior onda de emigração da Ucrânia, que teve início em 2014 com a guerra no Donbas, vivem hoje na Polónia cerca de 3-3,5 milhões de ucranianos.

Os refugiados vindos do outro lado do rio Bug, após o início da guerra, têm na Polónia o direito a prestações familiares e de educação, entre elas um pagamento mensal de 110 euros por cada criança. Recebem também assistência psicológica gratuita, alimentação e acesso a cuidados médicos. "Será difícil para nós retribuir a gentileza que aqui vivemos de muitas pessoas e instituições", explica Olga, de Kiev, que desde março encontrou abrigo na área metropolitana de Varsóvia. "Os procedimentos realizados por funcionários polacos no âmbito do acolhimento aos refugiados são muito eficientes. No ponto de receção temporária junto ao estádio do Legia foi-me dado em poucas horas tudo o que é preciso para viver: alojamento gratuito, um cartão para chamadas telefónicas e internet, um número de identificação para registar os meus filhos na escola e ter acesso a um médico, bem como uma oportunidade de trabalho", conta a ucraniana.

Outra vítima da guerra, Anna Yashina, cita as palavras do presidente Volodymyr Zelensky, quando este disse, em março, que, graças à abertura dos polacos aos milhões de refugiados "de facto, já não há fronteira entre a Ucrânia e a Polónia". Acrescentou que até que a guerra esteja terminada não tenciona regressar à terra natal.

A maioria dos refugiados adultos ucranianos não está desocupada. De acordo com o Ministério do Trabalho polaco, mais de 400 mil pessoas, ou cerca de 60% dos refugiados em idade ativa, já encontraram um emprego. Mais de metade declara que está a ganhar melhor salário, comparando com a vida na Ucrânia. Um estudo da Gremi Personal mostra que quase 52% dos refugiados ucranianos que trabalham na Polónia acreditam que a sua estada neste país lhes deu um melhor nível de vida.

O empresário Dominik Piwowarczyk, proprietário da empresa de comércio e serviços D&D, de Varsóvia, acredita que o aparecimento de refugiados ucranianos no mercado de trabalho polaco pode torná-lo mais dinâmico a longo prazo. "Em vários lugares substituíram os polacos que emigraram para a Europa Ocidental nos últimos anos", disse, salientando que permanece um mistério a questão da estabilidade das finanças públicas, sobrecarregadas com o pagamento de apoios sociais aos numerosos recém-chegados.

As autoridades da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) também apontam o pesado fardo que a ajuda concedida à Ucrânia representa para o orçamento do governo polaco. Estimam que no final de dezembro de 2022 as despesas relacionadas com a manutenção dos refugiados de guerra ascenderão na Polónia a 8,4 mil milhões de euros e serão as mais elevadas entre os países membros da organização.

A 10 de novembro, no Parlamento Europeu, representantes polacos argumentaram que as declarações generalizadas de solidariedade da UE para com as vítimas do conflito não chegam e que "a abertura dos corações deve ser acompanhada pela abertura das carteiras". Marta Majewska, presidente da câmara da cidade fronteiriça de Hrubieszów, participante do evento, disse acreditar que até ao momento as autoridades locais polacas não sentiram qualquer apoio por parte da UE. Acrescentou que a sua cidade, de 17 mil habitantes, só na primeira semana da guerra recebeu 10 mil vítimas do conflito. "A palavra solidariedade [...] assume hoje uma nova dimensão histórica e um novo significado. Nós, como Polónia, temos o direito de contar com esta solidariedade, temos o direito de esperar esta solidariedade", disse Majewska em Bruxelas, recordando que mais de 90% dos ucranianos chegados à Polónia são mulheres e crianças.

Apesar de Bruxelas, desde o início da guerra, ter anunciado a sua prontidão para apoiar as vítimas, os primeiros fundos da UE destinados a este fim chegaram à Polónia apenas em outubro -- 144,6 milhões de euros. O ministro do Interior polaco, Mariusz Kamiński, admite que, embora a quantia seja "pequena face às necessidades", este apoio mostra que a UE aprecia a Polónia. Aponta que Varsóvia tinha solicitado a Bruxelas mais 40 milhões de euros, esperando, na sequência da destruição pela Rússia de infraestruturas críticas ucranianas, uma nova vaga de migrantes no inverno. Segundo o eurodeputado Jan Olbrycht, a Europa deve fazer um ajustamento urgente no seu orçamento. "A guerra mudou a situação. Não existem fundos suficientes no orçamento da UE para 2021-2027 que possam ser realocados, entre outras coisas, ao apoio económico-financeiro à Ucrânia", observou o membro do partido de oposição Plataforma Cívica.

Entretanto, na sociedade polaca a disponibilidade para ajudar os ucranianos mistura-se com fadiga e até mesmo queixas. Uns pedem mais empenho da Comissão Europeia, enquanto outros exigem que os ucranianos cuidem por si da sua própria subsistência. "Os polacos já ajudaram demais, tirando dos seus próprios bolsos. Penso que alguns dos refugiados permanecem aqui apenas para beneficiar de apoio social. Muitos deles receberam aqui apoio com o qual nem os próprios polacos podem contar ", aponta a enfermeira de Varsóvia Teresa Lis, salientando que muitos cidadãos polacos que pagam contribuições para a saúde pública foram "expulsos" das filas de espera dos hospitais e clínicas médicas para dar lugar aos ucranianos. "A prioridade é agora dada aos ucranianos, o que irrita muitos doentes", disse Lis, evidenciando que está aborrecida, entre outras coisas, com a grande presença na Polónia de médicos e enfermeiros ucranianos. "Uma vez que há uma guerra na Ucrânia, o seu lugar é com os seus compatriotas que sofrem. As equipas médicas estrangeiras com fraco conhecimento da língua ucraniana não os substituirão lá", acrescentou.

Os peritos em segurança salientam que o afluxo maciço de ucranianos à Polónia é uma área de interesse para o Kremlin, com o alvo de espalhar fake news e manipulações, a intensificarem-se à medida que a guerra continua. O site CyberDefense24 aponta que a desinformação russa pode alimentar-se com o ressentimento histórico. Salienta que a retórica utilizada por estas fontes apresenta frequentemente figuras controversas, como Stepan Bandera, cofundador da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN-B), que através do Exército Insurreto Ucraniano (UPA) levou a cabo a limpeza étnica da população polaca durante a II Guerra Mundial. "A questão do alegado privilégio, principalmente financeiro, dos ucranianos na Polónia é também uma narrativa extremamente popular e antagónica. É de esperar que no contexto da inflação crescente e da situação cada vez mais difícil de muitas famílias polacas sejam usados estes slogans para fins de desinformação", explicou.

Os manipuladores pró-russos também estão ativos na Ucrânia, espalhando notícias sobre um alegado plano de Varsóvia de anexar territórios ucranianos. Apenas poucos se deixam enganar. Segundo um inquérito apresentado pelo Top Lead, 97% dos ucranianos que vivem hoje na sua terra natal consideram a Polónia um país amigo. O presidente Zelensky falou sobre esta atitude na sexta-feira, por ocasião do 104.º aniversário da independência da Polónia. Utilizou simbolicamente 104 palavras polacas para agradecer aos vizinhos o apoio, o qual ele supõe ficará impresso na memória dos ucranianos: "Recordarão como nos receberam, como nos ajudaram. Os polacos são nossos aliados, a vossa pátria é nossa irmã. A vossa amizade será para sempre. A nossa amizade será para sempre. O nosso amor, para sempre. Juntos seremos vitoriosos."

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