A pandemia não impediu que o Festival de Teatro de Almada acontecesse em 2020 e 2021. Mas só este ano o festival volta ao formato tradicional, a festejar ao ar livre e com o regresso dos concertos diários na esplanada, este ano consagrados à música do mundo. Robert Wilson, Thomas Ostermeier e Wim Vandekeybus são alguns dos criadores internacionais que regressam ao festival, numa edição que também aposta forte na criação nacional e presta homenagem ao cenógrafo José Manuel Castanheira. Até 18 de julho, com palcos repartidos por Almada e Lisboa..Aucune Idée (Nenhuma ideia), do encenador suíço Christoph Marthaler, é o espetáculo de abertura e leva ao Palco Grande da Escola D. António da Costa o humor, mas também o absurdo. Criado durante a pandemia, passa-se no hall de um condomínio, "um não lugar", e reúne em cena Graham F. Valentine, colaborador de longa data de Marthaler e o violoncelista Martin Zeller. "Como se Kafka tivesse aterrado numa comédia de boulevard" escreveu um crítico internacional deste espetáculo, que tem como pano de fundo os imbróglios e imprevistos de um condomínio e explora o que está por trás dos pequenos erros e anseios do quotidiano..Ainda esta semana, estreia Noite de Reis, de William Shakespeare, que a Companhia de Teatro de Almada leva à cena dias 5 e 6, no Teatro Municipal Joaquim Benite. Encenada por Peter Kleinert - um velho conhecido do festival - a produção foi interrompida ao fim de uma semana de ensaios, em março de 2020. O que faz com que este seja um espetáculo diferente do inicialmente pensado. "Esqueci tudo o que tinha feito. Com a pandemia e agora a guerra, não fazia sentido a apresentação desta "ilha feliz" a que Viola chega. Optámos por mudar a cenografia e agora esta ilha está cheia de plástico", explica o encenador ao DN. Chegado de Berlim em maio, Kleinert não resiste a traçar um paralelo entre esta ilha ficcional e o ambiente encontrado em Almada. "O festival acaba por criar a sua própria ilha. Aqui, nos ensaios ou sentado na esplanada do teatro, sinto que a guerra está longe", afirma..O encenador não esconde que Noite de Reis é uma das suas peças favoritas. "É a mistura perfeita de tragédia e comédia - é, ao mesmo tempo, violenta, confusa e utópica", diz. A questão da identidade e da autodescoberta são temas que perpassam ao longo de toda a ação desta comédia em que uma mulher (Viola) assume a identidade de um homem (Cesário) como forma de se proteger numa terra estranha, espoletando equívocos. "A Leonor [Alecrim] faz os dois papéis. A personagem está no centro de tudo e a um dado momento já não sabe quem é. No fim todos perdem porque não sabem quem amar", explica o encenador, que destaca ainda a musicalidade como marca do espetáculo..Esta edição é ainda marcada pelo regresso de Robert Wilson que, depois de ter estado presente em 2019, regressa ao festival, e ao Teatro Nacional D. Maria II, (a 16 e 17 de julho), com I was sitting on my patio, um monólogo descrito pelo próprio Wilson como "uma espécie de sonho acordado", em que a mesma situação é vivida por duas pessoas diferentes. Estreado em 1977 -com Wilson e Lucinda Childs como protagonistas - conta agora com a interpretação de Christopher Nell e Julie Shanahan..Os alemães da Schaubühne am Lehniner Platz, propõem uma versão atual do mito de Édipo, com Ödipus (Teatro Municipal Joaquim Benite, 14 de julho). Baseada em Édipo Rei, a encenação de Thomas Ostermeier a partir do texto original de Maja Zade, desenrola-se na Grécia atual, onde questões como a crise ambiental ou o assédio por parte dos grandes grupos empresariais se cruzam com a atualização do mito edipiano..A dança continua a ter lugar no festival, com o trabalho conjunto do coreógrafo belga Wim Vandekeybus, do performer e artista plástico francês Olivier de Sagazan e a compositora espanhola Charo Calvo a apresentarem Hands do not touch your precious Me, no Teatro Municipal Joaquim Benite, a 17 e 18 de julho..Se eu fosse Nina foi escrito por Rita Calçada Bastos para a atriz Carla Maciel a partir da personagem Nina, de A Gaivota, de Anton Tchecov, e a vivência da própria encenadora, e é uma das sete propostas nacionais deste festival. "Construí um universo de suposições. O que teria acontecido se Nina não tivesse trocado o sonho por um grande amor?", explica a autora. O limite entre a ficção e a realidade são a base de um espetáculo que é também um ato de resistência - foi criado na pandemia e estreado na sala virtual do Teatro Municipal de São Luiz em março de 2021. "É a peça de uma atriz que se fecha dentro de um teatro porque se recusa a que ele deixe de existir"..Por oposição à clausura de Nina, Selvagem, do encenador e realizador Marco Martins, traz o exterior e a relação com a natureza presente nos rituais do solstício por toda a Europa. Num trabalho de pesquisa partiu para Trás-os-Montes, para a Roménia e a Sardenha, enfrentou a resistência de algumas comunidades que não quiseram participar no projeto e a abertura de outras. "Não pretendia que este fosse um texto sobre a máscara. Interessavam-me as pessoas que fazem o ritual", explica. Em palco, encontram-se pastores e agricultores sardos e transmontanos, num espetáculo em que há uma procura pela individualidade e identidade que se esconde por trás das máscaras..A questão da identidade - pessoal, cultural, de género - é, aliás uma das marcas da edição do festival, estando presente em espectáculos como Eu Sou a Minha Própria Mulher, de Doug Wright, encenado por Carlos Avilez para o Teatro Experimental de Cascais, que conta a história de Charlotte von Mahlsdorf (interpretada por Marco D"Almeida) pessoa transgénero que viveu na Alemanha sob o regime nazi e depois na RDA; Fado Dans Les Veines, em que Nadège Prugnard reflete sobre a sua identidade cultural, à vez francesa e portuguesa, passando, de forma menos direta, pela proposta de Wim Vandekeybus..dnot@dn.pt