A eurásia

Publicado a
Atualizado a

A visita de Vladimir Putin à Grécia, e a atenção mundialmente despertada pela subida ao monte Athos, são factos que voltam a chamar à meditação sobre a evolução do conceito estratégico que orienta o presidente da Rússia. O regime constitucional tem-lhe proporcionado uma experiência longa no que respeita à oscilante ordem mundial, e também à rapidez com que, versado profissionalmente na arte da estratégia, tem mudado o acento tónico do projeto nacional.

Dos primeiros mandatos recolheu a visão que tinha do futuro, publicando em 2013 um texto definidor da "Conceção da política exterior da Federação da Rússia". Aquilo que evidenciava o texto era sobretudo um desvio do europeísmo que manifestara, em solidariedade com Chirac, contra a intervenção americana no Iraque, que teve os errados motivos e as graves consequências do presente. Talvez o alargamento da União Europeia em direção à sua tradicional fronteira de interesses lhe tivesse chamado a atenção para o outono ocidental que estamos a viver, com um modelo económico que, desenvolto, conduziu à crise económica e financeira dissolvente de futuros sonhados, o tenha levado a considerar sem riscos os atos de agressão envolvendo a defesa dos seus interesses na Crimeia em 2014 e conduzindo a Ucrânia a um profundo divisionismo. Foi muito posta em evidência pela imprensa uma sua declaração à Duma Federal nos seguintes termos: "Mentiram-nos em várias ocasiões, tomaram decisões nas nossas costas, colocaram-nos perante factos consumados. Isto verificou-se com a expansão da NATO para leste, com a instalação de sistemas de defesa antimíssil, com o desenvolvimento constante de negociações sobre os vistos, com as promessas não sustentadas de concorrência honesta e de acesso livre aos mercados mundiais." É difícil não admitir que avaliou a importância abalada dos ocidentais no globalismo em crise, que os débeis resultados da sua intervenção militar eram visíveis e que, em contrapartida, despontavam centros de poder desafiantes no Oriente, com destaque para a China. Estes factos encaminharam para uma nova meditação sobre o europeísmo que caracterizou a oportunidade de uma União Soviética membro da grande Europa em organização, a chamada "casa comum europeia" que pareceu orientar a perspetiva de Mikhail Gorbachev, na análise do jornalista Andrei Gratchev, nessa época já inquietante, quando a temática da redefinição entre o processo de transição dos centros de poder que conduziram a Guerra Fria eram desafiados pelos poderes emergentes na economia, sem dúvida, mas na dimensão militar também desafiante.

Nessa data crucial, à Rússia reequilibrada interiormente não se lhe aplicava o conceito de "homem doente" que de tempos a tempos apareça na análise diplomática, era membro do Conselho de Segurança a tender para ativo interveniente. As declarações de queixa em relação aos ocidentais não tinham necessariamente que ver com a verdade, mas sim com a nova teoria de justificação a despertar para cobrir o novo conceito estratégico, que enfrentava o europeísmo pacifista, e que parecia ter sucedido ao antigo projeto de unidade dos Urais ao Atlântico, de resposta ao projeto NATO de unidade do Atlântico aos Urais.

O cenário em que apareceu, tendo a reprodução da águia bicéfala a animar o ambiente, e o cortejo de generais a certificar a estratégia quando, enfrentando o projeto europeu da inclusão da Ucrânia, explicou que a sua fronteira de interesses era mais vasta do que a sua fronteira geográfica, de facto foi o anúncio de se assumir como presidente do Império do Meio, aderente ao conceito de União Euroasiática. A atual candidata à presidência dos EUA, então secretária de Estado, Hillary Clinton, discursando na OSCE, em 2012, ocupada a avaliar a segurança e a cooperação na Europa, não deixou de notar que estava em curso uma tentativa de regresso à dimensão da extinta União Soviética, e assumir que a tentativa devia ser contrariada. De então em diante os discursos, incidentalmente, foram como de hábito destinados a tranquilizar o ambiente, sem maneira de dar essa tranquilidade à marcha dos conceitos estratégicos adotados. É sobretudo imaginativa a afirmação de que o projeto da União Euroasiática imita o método seguido pela formação da União Europeia, quando a doutrina da abrangência da fronteira de interesses, superior à fronteira geográfica, parece ser a linha a manter em observação.

Nesta época de turbilhões, em que se fala na "corrida global para reinventar o Estado", o desastre humano das migrações, que ensombra a circunstância europeia, está a fazer imaginar se voltamos a uma época malturiana, em que o equilíbrio entre recursos, modelos e bom governo implica a diminuição brutal da população. Mas no que respeita à Europa a pergunta é se no topo dos seus problemas deve estar a discussão sobre décimas, uma distração tão perigosa como foi a discussão sobre o sexo dos anjos em Constantinopla. A Rússia, essa trata das suas capacidades militares, da sua dimensão político-geográfica, dos recursos económicos, e da adesão do povo ao projeto.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt