"Os iemenitas não estão a passar fome, estão a ser levados a morrer à fome." O alerta foi dado, no final do ano passado, pelo subsecretário-geral das Nações Unidas e responsável pela coordenação de assuntos humanitários, Mark Lochwood, lançando apelos à comunidade internacional. Há uma década, os iemenitas saíram para a rua embalados pela Primavera Árabe para derrubar o presidente Ali Abdullah Saleh. Mas a esperança na queda do regime transformou-se numa guerra civil e numa crise humanitária. Segundo a ONU, 13,5 milhões de pessoas já passam fome ou enfrentam a insegurança alimentar, podendo este número chegar aos 16 milhões (mais de metade da população) até junho.."Durante 50 anos, houve sub-representação política, desigualdade social, pobreza, corrupção e lutas de identidade", disse à AFP Maged Al-Madhaji, que testemunhou aquela primeira manifestação dos iemenitas a pedir a saída de Saleh, a 27 de janeiro de 2011, e agora dirige o Centro de Estudos Estratégicos de Saná. "O povo só queria uma nova forma de ser governado, mas a revolução foi apropriada por partidos políticos que a corromperam", acrescentou..As manifestações começaram de forma pacífica, mas a repressão dos protestos precipitou a violência. Saleh, no poder há mais de três décadas, ainda anunciou um referendo a uma nova Constituição, para separar os poderes executivo e legislativo, mas após meses de pressão e um atentado à bomba acabaria por renunciar em fevereiro de 2012 a favor do vice-presidente, Abdrabbuh Mansur Hadi. No entanto, a transição foi mais difícil do que o esperado, com ataques por parte de jihadistas e uma rebelião a sul..Aproveitando o caos, o movimento da minoria xiita houthi (oficialmente Ansar Allah) assumiu o controlo do norte do país. Antigos adversários de Saleh, uniram-se a este e a grupos que ainda lhe eram leais para invadir a capital, Saná, em setembro de 2014, e eventualmente assumir o controlo. O presidente Hadi foi obrigado a fugir para o exílio na Arábia Saudita em 2015..A guerra civil no Iémen acabaria por se tornar numa guerra entre dois inimigos externos, com uma coligação de países de maioria sunita liderada pela Arábia Saudita (com apoio logístico e de inteligência dos EUA, Reino Unido e França) a lançar uma intervenção para devolver o poder a Hadi. Do outro lado do conflito, os houthis têm alegadamente o apoio do gigante xiita regional: o Irão. Teerão nega contudo estar a armar os rebeldes - a ONU já disse que os houthis têm armas iranianas, sem dizer, no entanto, que estas foram diretamente de Teerão para os rebeldes..No meio do conflito, em dezembro de 2017, Saleh virou as costas aos houthis e mostrou-se disponível para negociar com Hadi e a coligação liderada pela Arábia Saudita - que aos poucos foi recuperando o controlo do sul do país. Dois dias depois seria contudo morto pelos houthi em Saná. Dentro do campo anti-houthi também surgiram divisões em 2017, com separatistas do sul - com o apoio dos Emirados Árabes Unidos - a assumir controlo de parte dessa região. Hadi tinha estabelecido em Aden o quartel-general do seu governo. Um acordo para um novo executivo de união nacional foi alcançado já em dezembro de 2020..Entretanto, em represália pelos contínuos bombardeamentos sauditas, que destruíram infraestruturas no Iémen, os rebeldes atacaram instalações petrolíferas da Arábia Saudita. Para evitar a entrada de mais armas, os sauditas apertaram o bloqueio ao Iémen, com as restrições a aumentar os preços dos alimentos e do combustível e a precipitar ainda mais a crise humanitária. Apesar das tentativas de paz, que levaram até a trocas de prisioneiros, a guerra continua..No final do ano passado, o Gabinete de Assuntos Humanitários da ONU estimava em 233 mil o número de mortos da guerra civil até outubro, sendo que destes 131 mil terão morrido de causas indiretas, como a falta de alimentos, de serviços de saúde e de infraestruturas. Estima-se que 24 milhões dos 29 milhões de iemenitas (83%) necessitem de ajuda humanitária.."É a guerra que está a empurrar os iemenitas para a fome. Foi assim que chegámos a este ponto. A economia está a colapsar e os doadores estão a oferecer muito menos ajuda este ano", disse Lochwood, explicando que só 50% dos 3,38 mil milhões de dólares necessários tinham chegado. "O que temos agora é o resultado das decisões de pessoas poderosas no Iémen e noutros países. É por isso que digo que os iemenitas estão a ser levados a morrer à fome. Essas mesmas pessoas poderosas poderiam facilmente escolher não o fazer.".A dias de deixar a Casa Branca, Donald Trump colocou os houthis (que são apoiados pelo Irão) na lista de "organizações terroristas estrangeiras", apesar de as Nações Unidas e outras organizações não-governamentais terem alertado para o impacto que isso teria na distribuição de ajuda humanitária. A entrada na lista, que desencadeou protestos no Iémen, abriu a porta a sanções contra aqueles que pudessem negociar com os houthis, que controlam a capital e parte do norte do país. As agências humanitárias dependem dos houthis para entregar a sua ajuda, pagando-lhes salários por esse serviço. O novo presidente dos EUA, Joe Biden, não os retirou da lista de organizações terroristas - isso implica um trabalho mais aprofundado -, mas aprovou um regime de exceção até pelo menos 26 de fevereiro, pendente de uma nova avaliação, que permitirá que a ajuda humanitária continue a ser distribuída.