"Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem." Vladimir Ilyich Ulyanov ou Lenine, 1870-1924.Entusiasmo, frenesi e exaltação pairam no ar. O processo de vacinação está finalmente em curso a bom ritmo (não em todos os países, mas isso é coisa que não se tende a considerar) e à medida que os cidadãos esticam o braço e são inoculados, o sol resplandece, o tempo aquece, o céu cintila, as ondas espreguiçam na areia e o chamamento de praias, esplanadas e restaurantes, deste ou de outros cantos do mundo, é ouvido. Perdura o sentimento de que a vida é um milagre, que não pode ser regida pelo medo nem refém do pessimismo. E se a vida é uma bênção, os únicos medos relevantes advêm da banalidade, da aquiescência passiva, da ausência de acção perante o sonho e da estagnação paralisante - imposta que foi pelo confinamento. As redes sociais vêem-se repletas de selfies acompanhadas dos termos fauci ouchie (anunciando toma da vacina e invocando o nome do chief medical advisor do presidente dos EUA), vaxication (referência a férias pós-inoculação) e carpe diem (que manda aproveitar o dia). A questão que se coloca neste quadro é se o confinamento, a fadiga pandémica e o restabelecimento de liberdades levarão, qual catalisador, a uma réplica dos loucos anos 20, com a frivolidade e os excessos do século passado, surgidos que foram quando uma onda de euforia se apoderou de muitos findas a gripe espanhola e a Primeira Grande Guerra..Com efeito, há quase cem anos, uma outra pandemia varreu o globo, infectando cerca de um terço da população, de então, em quatro ondas sucessivas e causando cerca de 50 milhões de mortes (Centre for Disease Control and Prevention). O mundo desmoronou e ao fim da pandemia seguiram-se os chamados loucos anos 20 (roaring twenties ou années folles) que trouxeram consigo dramática mudança a vários níveis. Tratou-se de um período de prosperidade económica, de desenvolvimento tecnológico, de florescimento cultural e de transformação social. A década em questão incluiu a adopção de automóveis, de camiões, de equipamento agrícola, de aviões, de telefones, da rádio, do cinema, de canalização, de frigoríficos, de máquinas de lavar a roupa, gerando investimento, por exemplo, em estradas e na produção de borracha, aço, vidro e petróleo (Bloomberg). A cultura floresceu, nos anos 20, tendo o acesso à mesma sido facilitado pelo advento da radiodifusão, do cinema e de revistas de ampla circulação. Foi então que a art déco conheceu o seu apogeu, influenciando, por exemplo, a arte, a arquitectura, o design, o cinema. Foi então que se verificou o Renascimento do Harlem, um movimento cultural que incluiu ícones como Josephine Baker, Louis Armstrong, Duke Ellington, Ella Fitzgerald e a inesquecível Billie Holiday. Em vários pontos do mundo as mulheres conquistaram o direito ao sufrágio, expandiram a sua participação no mercado de trabalho e ousaram ornar saias um pouco mais curtas..É importante notar que os loucos anos 20 não são apenas fruto pós-pandémico e sim o resultado de uma época marcada por uma feroz pandemia e por uma não menos atroz Guerra Mundial. Aliás, não foram erguidos monumentos aos heróis da gripe espanhola nem criados museus para registo de património e relato a ela associados. A gripe espanhola foi alvo de esquecimento social, absorvida que foi pela Primeira Grande Guerra (Smithsonian Magazine). Já a covid-19 emergiu sem um conflito global como pano de fundo. Mais, a gripe espanhola matou sobretudo jovens, acentuando a convicção entre os sobreviventes de que havia que viver de forma intensa. Claro que a actual pandemia afectou os jovens. Aliás, os jovens revelaram-se psicologicamente mais vulneráveis em tempos de pandemia, talvez em virtude de uma forte necessidade de interacção social que ficou por suprir (Nature). Todavia, desta feita, a morte não incidiu, mormente, na juventude..Apesar das dessemelhanças apontadas entre o contexto que rodeou a gripe espanhola e o que caracteriza a actual pandemia, também desta vez se assistirá a uma inevitável reacção popular, tanto em sede de pós-confinamento como de pós-pandemia. Em plena pandemia verificou-se um aumento do fervor religioso, da aversão ao risco e da frugalidade financeira (Smithsonian Magazine). Ora, prevê-se que essas tendências sofram reversão à medida que o impacto da pandemia enfraquece e que se busque, então, com perigosa sofreguidão, a interacção social. Em fase pós-pandémica é expectável que a mudança surja em vários moldes. Basta referir, à laia de exemplos, o caos económico criado pela pandemia que requererá medidas políticas robustas, vigorosas, adequadas e eficazes; o teletrabalho que veio para ficar e que desencadeará mutações no meio profissional; e as revolucionárias vacinas ARN mensageiro (ARNm) que estimulam a imunidade de forma inovadora e que abrem a porta a terapias baseadas em ARN..A mudança só tende a surgir na presença de um catalisador, não subsistindo dúvidas de que a pandemia funcionará como verdadeiro catalisador, eliminando hesitação, acelerando, alimentando, dinamizando, incentivando e estimulando a transformação, por exemplo, nos sectores económico, político, industrial e da saúde. Contudo o hedonismo que integrou famosamente os loucos anos 20 do século passado não perdurará nem estará ao alcance de muitos, no âmbito de uma tempestade económica em que abundam o desemprego e o futuro incerto. Mais, há que ter cuidado; convém lembrar que as vacinas não são 100% infalíveis e que um número significativo de pessoas nunca serão inoculadas, permitindo a continuada circulação e evolução do vírus. Como tal, a surgir uma vaga de loucura, semelhante à anterior, há que recordar que a interacção social deve ser acompanhada das devidas medidas de redução de cadeias de contágio, pois a covid-19 não foi erradicada. Diz Sun Tzu que "há certas estradas que não devem ser percorridas". Se o forem, acrescentamos nós, fazemos votos para que tal suceda com o mínimo de bom senso..Filipe Froes é pneumologista, consultor da DGS, coordenador do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem dos Médicos e membro do Conselho Nacional de Saúde Pública.Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual e Associate, CIPIL, University of Cambridge.Os autores escrevem de acordo com a antiga ortografia.