Há 222 anos, uma conspiração mudou o governo da França e o destino da Europa. Um general em deserção e um abade renunciado prescindiram das suas divergências para deporem um diretório e tomarem o poder. O golpe ficou eternizado na História como o 18 de Brumário, apesar de ter durado dois dias e de o calendário em uso estar esquecido. Também nós vamos em novembro ‒ mês, durante a Revolução Francesa, referido por outro nome ‒ e também nós estamos em época de conspirações. Brumário, que reuniu Napoleão e Sieyés, trouxe o regime do diretório ao fim, o consulado e, a seguir, o Império. O regresso dos dois homens a Paris, em 1799, abanou os alicerces já frágeis da República que havia sobrevivido ao Terror de Robespierre. Sieyés voltava de embaixador em Berlim, afastado por excessivo ascendente sobre uma classe política receosa de unanimidades. Bonaparte vinha do Egipto sem qualquer ordem para isso, mas com larga popularidade após triunfos militares em Itália e no deserto..É essa a primeira lição de Brumário para os dias que correm: o tempo, na política, é tudo. Se Napoleão houvesse aportado em Ajaccio meses antes, teria sido executado por desertar de um cenário de guerra. Se tivesse chegado semanas depois, seria já irrelevante para a resolução do impasse da República. Na crise política que vivemos, mas em Portugal, é duvidoso que a gestão do tempo convenha a seja quem for: o PS e toda a esquerda vêm das autárquicas fragilizados; o PSD e toda a direita estão em processos de relegitimação interna e vincada incompatibilidade programática. O Chega é contra o regime que os restantes fundaram. Rio não descarta viabilizar uma governação socialista pelos demais desprezada. Chicão escolheu a toxicidade da irrelevância. Apenas Rangel, que pode ser candidato sem o calvário de liderar a oposição, tem razões para otimismo..A segunda lição de Brumário é outra, na qual António Costa tem sido, até este ano, mestre. A discrição. Não há registo escrito, carta ou rascunho da ação política de Napoleão durante a congeminação do golpe de Brumário. O pequeno corso, que já escapara à guilhotina uma vez, não arriscou escrever uma linha ou agendar uma reunião que o comprometesse. Bonaparte limitou-se a regressar e esperar. Não procurou ninguém, foi procurado por todos. Também assim, em 2015, Costa se fez primeiro-ministro. Poucos previam o acordo da dita "geringonça", e ainda menos que ele durasse seis anos. Discrição é surpresa, e surpresa é poder. "Terei de ganhar com eles e, depois, contra eles" foi a frase com que Napoleão olhou o apoio dos jacobinos à sua ida para o governo. Costa, com a esquerda, poderia ter dito o mesmo..A terceira lição de Brumário é mais familiar à nossa política. A desinformação e a mensagem, em disputas de poder, pesam. Bonaparte mantinha um autêntico exército de propaganda, a quilómetros de distância. Os seus boletins de batalha, inescrupulosamente manipulados com números de fatalidades residuais e sucessos exagerados, eram entregues ao diretório e prontamente difundidos em panfletos pelas ruas. Quando Napoleão alcançou Paris, o povo tomava-o como autor de vitórias em batalhas que nem travadas haviam sido. O mito do general foi a incubadora da sua carreira política; de estadista ou tirano, conforme o observador. Em democracia, a informação ‒ e a desinformação ‒ possui impacto idêntico. Bonaparte era o único agente político em França capaz de representar vitória e paz ‒ dito de outro modo: uma estabilidade digna ‒ e é o candidato a primeiro-ministro que mais se aproximar dessa junção que será o favorito nas legislativas de janeiro..A quarta e maior lição de Brumário é o paradoxo das intenções de quem as manifesta. Napoleão e Sieyés, que se detestavam, derrubaram as instituições que anunciaram vir salvar. As duas assembleias populares da Revolução ‒ o Conselho dos Antigos e o Conselho dos 500 ‒ caíram, depositando-se nas mãos de quem as usurparia. Benjamin Constant, célebre deputado e teórico liberal, acreditava que só o abade salvaria o iluminismo francês. Mas o golpe de que foi cúmplice faria justamente o oposto. Não uma república de liberdades, mas um continental império de conquistas: o bonapartismo..Também é nessa contradição que o dia seguinte às nossas eleições viverá. Todos prometerão estabilidade, apesar de dificilmente o governo que tomar posse vir a durar, como este, meia legislatura. Todos pedirão maioria, independentemente de saberem a improbabilidade de por ela serem brindados. Todos farão juras de preferências e muros, mesmo que a imprevisibilidade do resultado as torne impossíveis de cumprir. Ao fim de seis anos de gritos de "nunca" e "para sempre", teremos uma campanha condenada à contradição. Ao "nim"..Costa, que no verão passado acusava o PSD de "complacência com a extrema-direita", não fecha hoje a porta aos sociais-democratas. Rio, que ameaça sair se perder, admite dialogar com quem vencer. Rangel, que não deseja viabilizar um executivo do PS, pode ser a isso forçado pela instabilidade de um país em pânico económico e sanitário ‒ e pela tentação de deixar Costa em lume brando durante um ano. Marcelo, que sempre pediu um governo e uma oposição fortes entre si, pode acabar com um entendimento do centrão ao colo..A única coisa que verdadeiramente não mudará é a confiança dos portugueses no sistema político: continuará nula para quem lhe dá atenção e indiferente para quem tem mais com que se preocupar..Em Brumário, até um cidadão de farda se apresentar, também foi assim. Lá, morreu a Revolução. Cá, está em coma o regime..Colunista