A educação escolar, a diversidade e o valor de participação

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Se ainda tem dúvidas, estimado leitor, sobre a natureza político-ideológica do fenómeno educativo, basta acompanhar a mais recente controvérsia em torno do projeto de lei do PS sobre a autodeterminação de identidade de género nas escolas. Assim que aprovado na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades de Garantias, logo se instalou um aceso debate, com as habituais vozes na comunicação social, umas a favor e outras contra, bem como grupos de cidadãos a solicitar a intervenção do Presidente da República. Sem surpresa, a favor encontramos os partidos políticos e grupos sociais mais progressistas. Contra estão os partidos e grupos sociais mais conservadores. Na votação que teve lugar na Assembleia da República, o PCP, prudentemente, absteve-se.

O tema inscreve-se no campo dos direitos humanos e da justiça social e, portanto, na questão de garantir o direito de todos alunos a sentirem-se reconhecidos em contexto escolar, bem como protegidos e apoiados no seu processo de desenvolvimento, participando de uma experiência escolar que salvaguarde o seu conforto e segurança. São princípios com os quais não podemos deixar de concordar, até porque a diversidade é hoje o mais distintivo traço que caracteriza as instituições escolares. Com efeito, a gestão da diversidade tem sido um dos maiores desafios que nas últimas décadas se tem colocado a uma escola que foi historicamente pensada para padronizar e não para reconhecer e trabalhar com a diferença.

Mas penso que se está a confundir a árvore com a floresta. Podemos, devemos e temos de questionar se faz sentido este enfoque dominante na identidade de género e orientação sexual, ao mesmo tempo que normalizamos, sem nada fazer, a violência simbólica que há décadas marginaliza, por exemplo, os grupos sociais mais pobres e os milhares de alunos afrodescendentes que, em Portugal, mantêm uma correlação fortíssima com o baixo rendimento escolar. Que escola é esta em que, comprovadamente, como evidenciado pela análise estatística dos resultados escolares e pela investigação científica, tende a segregar os alunos em função do seu estatuto socioeconómico e da sua ascendência? Não deverá a questão da diversidade (toda a diversidade e não apenas a da identidade de género e a orientação sexual) ser objeto de uma mais abrangente e cuidada atenção no desenho das políticas públicas de educação, por forma a corrigir as enormes injustiças que sabemos existirem nas nossas escolas, quando consideramos as diversas classes sociais e grupos socioculturais? E qual o papel das escolas em tudo isto, dos seus modos de organização e de funcionamento? E qual o papel das outras partes interessadas, particularmente das famílias e das organizações da comunidade?

Foi por tudo isto que defendi, no meu livro Pensar a Educação. Escola, justiça social e participação", a organização e o funcionamento da vida nas escolas, sob a liderança dos profissionais escolares, a partir de um modelo cívico de relação entre a instituição escolar, as famílias e a comunidade, cujo centro é a justiça social e curricular. Isto implica fomentar o debate democrático e a participação cívica na vida das escolas, estabelecer relações com o território, ligar o escolar com o extraescolar, os profissionais da educação com outros profissionais, os recursos escolares com outros recursos. Implica instituições escolares autónomas, abertas ao exterior e flexíveis. Propor, debater e implementar projetos desta natureza parece-me essencial para enfrentar os enormes desafios com que nos deparamos nas nossas escolas, carentes de respeito pela diversidade.

Professor do ensino superior.

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