A doença endémica que as mata
Um homem esfaqueou a sogra, estrangulou a filha e suicidou-se. Uma tragédia: dois mortos. Com todo o respeito pelas vidas humanas, duas mortes. Duas. Um inominável coiso não se conta, não se soma, não se junta às suas vítimas. Que, aliás, são três: a ex-mulher do coiso, filha e mãe das vítimas, vai carregar as mortes delas numa longa e insuportável dor. Aparentemente, foi por ela, a sobrevivente, que o coiso matou. Para ela se lembrar e afligir-se longamente.
Pelo tipo da brutalidade, chamei inicialmente homem ao coiso. Porque, apesar de ele ser um coiso, foi levado para o seu ato por ser um homem. Comecei por lhe chamar "um homem" para sublinhar, no caso, a importância dessa condição. Ser homem não é, evidentemente, condição suficiente para um homem punir a sua mulher com violência e morte, mas ser homem, aqui e hoje, tem alguma influência para que se chegue a essa situação bruta e indigna. O aqui não desculpa mas explica: afinal, no nosso país, ser igual para as mulheres é uma conquista recente e em construção. O hoje não tem explicações nem desculpa: é tão, tão anacrónico esse comportamento...
Em Portugal, habitualmente e com incidência significativa, homens batem e matam as suas mulheres. Servi-me, de propósito, da definição científica de doença endémica porque é disso que se trata. Numa dada população (casais), e numa região (Portugal), há uma doença habitual que se propaga por contágio: um vírus com pilinha, por tradição familiar, conversa de bar e de trabalho, afirmações de poderosos irresponsáveis, enfim, ignorância antiga, contamina e mata. E regularmente. Para isto ganhar estatuto de estudo científico - e concluirmos de vez que a violência doméstica nos é endémica - faltava conhecer a quantidade das ocorrências e se a sua incidência é habitual e significativa. Eis o que ficou provado nesta semana.
Nesta semana, um juiz foi julgado e condenado levemente - e quando coisas destas acontecem, o "levemente" esquece-se, o que importa é a novidade de um juiz ter sido "advertido". No ano passado, ele inoculara de forma virulenta entre a população portuguesa o tal germe patogénico da pilinha. Infetou produzindo numa sentença, isto: "O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem." E: "Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte." E: "Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte." Doses fortes, pois.
Na minha infância, havia uma banda desenhada americana que tinha um herói chamado Brucutu. Era um simpático troglodita que andava sempre com a sua moca de pedra, arrastando da caverna a sua mulher, puxada pelos cabelos. Por falar nisso, o homem que tinha ido a tribunal, no julgamento que levou ao douto parecer do juiz agora julgado e advertido, agredira a mulher com uma moca de pregos, tentando arrastá-la para casa. Ao não dar o exemplo de Brucutu, talvez o juiz tenha livrado gente como eu a não ficar tentado pelo surto epidémico que por cá grassa. Mas o que dizer dos outros exemplos que o juiz deu? Que influência tiveram?
Um dos elementos da definição de doença endémica, já vimos, é a recorrência com que ela aparece. Nesta semana em que o juiz foi julgado aconteceu mais um homem a matar (literalmente) a sogra e a filha e a matar (metaforicamente) a mulher. Ora, por cá, as semanas que leva o ano são o número de mulheres já mortas pelos homens. O que juntou no mesmo espaço de tempo as palavras impensadas do juiz e o ato bruto do coiso. Destino, acaso, mera coincidência? Nada disso, inevitabilidade matemática: qualquer coisa, rara como um juiz julgado ou habitual como um jogo de futebol, tem fortes chances de acontecer com morte de mulher por homem.