Nos filmes de ficção científica, os momentos antes do terramoto são de aparente calma. Mas, de repente, o chão começa a abrir-se, tudo é engolido para um buraco colossal e surge gradualmente uma nova paisagem. No mundo dos media à escala planetária, o terramoto está a suceder. Primeiro foi o impacto colossal das redes sociais nos media tradicionais, literalmente pulverizando a indústria com modelo de negócio em papel. Agora são as OTT (sigla anglo-saxónica de over-the-top) a pulverizar as televisões nacionais generalistas e de cabo. A oferta digital organizada em catálogo de filmes, séries, documentários, etc., disponível a qualquer hora e em qualquer lugar - Netflix é o caso tecnologica- mente mais avançado -, muda o consumo e com ele o gosto. Nada fica como dantes..A tecnologia OTT é um sucesso total. É tudo o que estava prometido e nunca mais acontecia: uma televisão em qualquer lado onde manda o cliente. Faltam números - a Netflix não partilha quantos subscritores tem em Portugal (dos seus 137 milhões de clientes espalhados pelo mundo). Mas percebe-se pelas conversas que muita gente veste a camisola Netflix. São 7,99 euros por mês, ou 10,99 se quiser alta definição (HD) - e se for exigente e quiser partilhar a conta até quatro utilizadores, com som da mais alta qualidade, pode chegar a 16,99 euros..Muito ou pouco dinheiro? Os operadores de telecomunicações poderiam responder a esta pergunta, caso quisessem, porque há uma ameaça há vista sobre os seus catálogos - TV Cine, Sport TV, filmes em video-on-demand (VOD), e muitos outros produtos. Nos Estados Unidos (precursor da tendência) já está a acontecer..Em Portugal, no primeiro semestre deste ano, segundo a ANACOM, voltou até a bater-se o recorde de assinantes de TV paga, com 84,3% das famílias a preferirem essa oferta para ver televisão em vez da simples TDT. Mas há já um sinal: o ritmo de crescimento anual na subscrição de canais cabo premium (0,4%) é bem menor do que o de serviços de streaming (3,6%) abrangendo estes, em junho, 8,1% dos portugueses..Clique AQUI para ver o gráfico em página inteira.O truque de levar as OTT para o divã.A discussão seguinte vai ser: mas preciso dos canais cabo? Posso só pagar internet e a minha OTT preferida? A resposta é sim. Mas, bem conversado, o consumidor pode acabar a comprar tudo....Embora as OTT tenham nascido para estar em todo o lado - desde o computador ao telemóvel -, na verdade aquela qualidade de imagem e o viciante bingewatch beneficiam muito se forem acompanhados da televisão de tamanho XL e de um bom divã. E então venham lá as temporadas de séries, umas atrás das outras....Não por acaso a Vodafone foi a primeira a integrar a Netflix no seu fluxo - canal 105 - e anos depois a Meo fez o mesmo (canal 88). Com uma entrada por password que fica registada para sempre, a Netflix (e os novos concorrentes que se perfilam no horizonte) instalam-se dentro dos territórios físicos e sociológicos de todas as gerações, em todos os ecrãs possíveis. Mais de mil engenheiros permitem o fluir sem problemas da maior bomba de conteúdos disponível que o planeta humano produziu até hoje em tão pouco tempo, seja o aparelho velho ou novo. Centenas de horas de produção de alta qualidade e valor - sempre acima de dez biliões de dólares (nove mil milhões de euros) de investimento por ano em conteúdos estão "aqui". Mais de um terço de todo o tráfego internet do mundo já é OTT. E isto ainda agora começou..Bom, mas se acha que já há, atualmente, muito por onde escolher e passar horas infinitas a ver boa "televisão", então prepare-se: isto vai multiplicar-se muitas vezes. Vem aí a HBO, previsivelmente no primeiro trimestre de 2019 associada à estreia em abril da temporada 8 da Guerra dos Tronos. Trazem igualmente as séries Westworld, A Amiga Genial (baseada nos livros de Elena Ferrante), o talk-show Last Week Tonight with John Oliver e ainda inúmeros filmes com fama de qualidade HBO..Já cá está, entretanto e de forma discreta, a Amazon Prime, possível de subscrever e visionar em smart tv ou "internet sem fios na tv - Chromecast", uma das formas mais na moda de abandonar a subscrição de canais de televisão e passar para a net na tv pelo módico preço de um pequeno gadget de 39 euros..Os pergaminhos da casa são elevados: por exemplo, a série que ganhou o Emmy para a melhor comédia é uma Amazon "Prime Original" chamada A Maravilhosa Sra. Maisel num catálogo que tem de tudo - desde Os Romanoffs ao Mozart na Selva para além do... Seinfeld (!) porque o catálogo vai muito atrás. E ainda há filmes, documentários, etc..Também no final de 2019 (ainda sem data) aparecerá ao virar da esquina do seu telemóvel e tv... a ultragigante WarnerMedia com todo o tipo de conteúdos que uma major pode oferecer, incluindo informação premium a partir de marcas com a CNN ou a Time..Bom, e então a Disney... que está no título desta peça? O melhor às vezes fica para o fim. Ou, visto numa perspetiva de concorrência, o pior. Espera-se que a OTT do rato Mickey seja um sucesso mundial arrasador. É simples: as crianças e os adolescentes vão querer. E a criança que está dentro de cada adulto também ajudará à decisão de compra..A Disney já vale hoje no cabo nacional 2% das audiências, só atrás da CMtv e do Canal Hollywood. Mas esta Disney que vem aí é de uma dimensão estratosférica. Primeiro, porque o Mickey traz amigos fortes: Pixar; Marvel, Star Wars; e National Geographic. E um infindável catálogo histórico. Tudo numa só OTT, global e de direitos exclusivos. Além do que ainda não sabemos....Significará então que, provavelmente, a partir de outubro de 2019, numa casa de classe média, haverá a OTT dos pais e a dos filhos. Eventualmente, nas de elevado poder de compra, talvez sejam adquiridos três ou quatro OTT de ficção (tipo Netflix, HBO, Amazon e Disney) e ainda os canais de desporto..Com este volume esmagador de produto, não se sabe se haverá atenção que mantenha a funcionar os tradicionais canais cabo, incluindo audiências significativas nos de notícias. Entretanto, há outra incógnita: se as empresas de telecomunicações vão ficar agarradas a uma commodity que é servir fibra e nada mais. O milagre Telefónica - que pôs a sua marca de telemóveis e fibra/internet, a Movistar, a produzir conteúdos caros e bons, é uma tentativa de ter algo original a diferenciá-la em Espanha. Por cá há zero neste sentido. Não há dinheiro..A conta a pagar pelos operadores nacionais.No território das televisões generalistas, imagine-se o impacto que representa toda a nata do melhor conteúdo mundial aprisionado em direitos exclusivos dentro de plataformas OTT. O que fica para as marcas históricas de cada país? Dir-se-á que fica a programação portuguesa, com formatos de entretenimento e diretos de eventos. Certo. Mas a escala é outra - sempre em queda - e cada vez mais dependente de públicos de idade avançada que não darão o salto tecnológico de imediato..Um dado simbólico apenas para se perceber o efeito micro destes negócios de escala planetária: há vários anos que a SIC vence as audiências de quase todos os dias de Natal e Ano Novo transmitindo filmes Disney (ou para crianças) desde as oito da manhã até à madrugada do dia seguinte. Agora imaginem os Natais de 2019 em diante, com a OTT da Disney acabadinha de chegar... E quem diz esta OTT, diz as outras..As marcas globais vão pulverizar os mercados e as produções. Restarão os grupos muito grandes e as suas casas de produção associadas, e os ultrapequenos, a produzir para nichos (se detiverem marcas locais fortes). Mas o grosso do pelotão tem um problema. São milhões de trabalhadores das marcas de televisão, cinema e media em geral, de todo o mundo, a ver bater à porta uma palavra "nova": globalização. E desta vez o problema não é com gente de poucas qualificações que trabalha nas minas ou no têxtil. É com eles.