A cena de um grupo de corvos que, alegadamente, fazem lembrar os espetáculos de menestréis onde artistas brancos com rostos pintados de negro imitavam e ridicularizavam os escravos africanos das plantações do Sul. Eis o elemento ofensivo que se aponta à animação Dumbo (1941), com um dos corvos a chamar-se Jim - tal como Jim Crow (corvo em inglês), o nome das leis que permitiam a segregação racial nos Estados Unidos. Já em A Dama e o Vagabundo (1955) há gatos siameses que falam com um sotaque asiático estereotipado, e outro em Os Aristogatos (1970) que toca piano com pauzinhos. Por sua vez, As Aventuras de Peter Pan (1953) mostra nativos americanos a serem chamados de redskins (peles vermelhas), um termo pejorativo para designar os índios..Estes são alguns dos filmes do nosso imaginário cultural que deixaram de estar disponíveis para usuários do Disney+ que façam uma pesquisa com o perfil de "crianças" (que indica a idade inferior a 7 anos). Assim se coloca a cereja em cima do bolo das medidas que foram tomadas desde o princípio, e que se intensificaram ao sabor da polémica com E Tudo o Vento Levou, retirado durante umas semanas do catálogo da HBO por, mais uma vez alegadamente, promover a nostalgia pela escravidão..Foi logo em 2019, poucos meses antes do lançamento da plataforma, em novembro, que a Disney anunciou que iria remover sequências problemáticas dos filmes mais antigos. Uma decisão (felizmente) revertida que acabou por dar lugar a notas de sensibilização junto às sinopses dos títulos, explicando tratar-se de produções de outra época e com aspetos agora repudiados pelos estúdios. Em outubro de 2020, essa mensagem que acompanha a ficha dos filmes foi alterada no sentido de tornar mais assertiva a condenação: "Este conteúdo inclui representações negativas ou tratamento inadequado de pessoas ou culturas. Estes estereótipos estavam errados naquela altura e estão errados agora. Em vez de remover o conteúdo, queremos reconhecer o seu impacto prejudicial, aprender com ele e iniciar conversas para criarmos um futuro mais inclusivo juntos." Ora a recente notícia da reclassificação etária de tais filmes, travando o acesso a crianças do pré-escolar - que, para todos os efeitos, é uma forma de desaconselhar, de todo, o contacto com estas obras - revela-se mais um passo no caminho da "purificação" do passado..A questão não é de agora. Numa crónica publicada em 1988 no jornal O Independente, João Bénard da Costa, o antigo diretor da Cinemateca e figura de proa da cinefilia em Portugal, ao escrever sobre a sua animação predileta, Dumbo, começa o texto com um longo pensamento à volta da "moda" que havia de se dizer que Walt Disney "corrompera várias gerações com animações antropomórficas." Afirma Bénard, no seu estilo apaixonado: "Era - é - a conversa género "psicanálise de contos de fadas" que sempre teve o condão de me irritar singularmente. Não porque seja descabida nas premissas, mas porque é falaciosa nas conclusões. Contra toda essa conversa, persiste a evidência que é dessas histórias que as crianças gostaram, gostam e gostarão." Se fosse vivo, o que diria da atual ginástica burocrática da Disney?.O tema é delicado e não vale a pena tentar simplificar. Mas talvez se possa colocar em perspetiva o efeito "maléfico" dos estereótipos. Não está provado em lado nenhum que quem cresceu com os filmes da Disney tenha retido uma mensagem obscura no subconsciente ou alimentado preconceitos. Pelo contrário, os bons valores sempre foram a marca de qualidade dos estúdios, mesmo que nalguns detalhes se identifiquem vestígios de uma época com outra sensibilidade cultural, ou falta dela - afastar o mais possível o património Disney dos espectadores é, pura e simplesmente, contribuir para o desvanecer de um imaginário comum que tem naturais imperfeições..Vale a pena descer ao pormenor. Pegue-se no caso dos corvos em Dumbo. Quem viu e se recorda do filme não pode deixar de notar que estes pássaros são das poucas personagens decentes e amigáveis da jornada do pequeno elefante. São eles que se comovem com a sua condição de animal discriminado, por causa das orelhas grandes, e o espicaçam até que ganhe coragem para voar. Além de que não há indícios de serem figuras da escravatura, tal é o ritmo e espirituosidade da cena - inclusive conta com vozes do coro afroamericano do compositor Hall Johnson, que também entra, embora um dos pássaros tenha a voz de um homem branco, Cliff Edwards. Os ditos estereótipos não deixam de lá estar, claro, mas a solução é fugir, como o diabo da cruz, da beleza de momentos como aquele em que Dumbo voa com a ajuda dos corvos?