Teoricamente, teremos aprendido com esta pandemia a importância de cenarizar todos os futuros possíveis (e não apenas os futuros prováveis) e de reforçar a área da prospetiva e planeamento. Teoricamente, teremos aprendido com esta pandemia que a confiança dos cidadãos na gestão de crises depende de decisões suportadas em dados fiáveis e no aconselhamento de especialistas independentes. Teoricamente, teremos aprendido com esta pandemia que os países são verdadeiramente interdependentes e que só a coordenação entre governos, o multilateralismo e a solidariedade internacional permitem debelar crises globais. Teoricamente, teremos aprendido com esta pandemia que o investimento em resiliência e prevenção (neste caso, serviços de saúde bem apetrechados e investigação científica de excelência) compensa. Teoricamente, teremos aprendido com esta pandemia que os pobres são sempre os mais afetados pelas consequências sociais e económicas das crises e que as oportunidades da digitalização não estiveram ao alcance de todos..Mas, em termos práticos, teremos mesmo aprendido alguma coisa com esta pandemia para prevenir futuros choques globais e ajustar as políticas públicas e estratégias de investimento? Esta inquietante dúvida é animada por uma coincidência temporal: na mesma semana em que o Fórum Económico Mundial apresentou o seu Relatório sobre os Riscos Globais - e se assiste a uma inquietante concentração de tropas russas na fronteira com a Ucrânia, a uma escalada dos preços do gás na Europa e ao início da presidência francesa da UE (que promete uma revisão do orçamento europeu e a reforma do espaço Schengen) - a campanha eleitoral e os debates televisivos para as eleições legislativas, em Portugal, ignora temas como a construção europeia, os desafios internacionais, a política de segurança, a cooperação para o desenvolvimento, a ciência, a educação, a cultura e o ambiente (apesar das referências, pouco mais do que cosméticas e superficiais, à transição climática). Para que se perceba melhor o paradoxo deste desalinhamento, vale a pena recordar os dez maiores riscos globais identificados pelo relatório acima referido: 1.º Fracasso no combate às alterações climáticas; 2.º Eventos climáticos extremos; 3.º Perda de biodiversidade; 4.º Degradação da coesão social; 5.º Crises de subsistência; 6.º Doenças infecciosas e pandemias; 7.º Poluição e degradação ambiental; 8.º Crise de recursos naturais; 9.º Crises da dívida soberana; 10.º Conflitos geoeconómicos. Além destes dez grandes riscos globais (dos quais cinco são associados a questões ambientais), o relatório também conclui que os governos e instituições ainda não se prepararam para lidar com alguns novos riscos relacionados com a inteligência artificial, a exploração espacial, os ciberataques e a desinformação..O divórcio entre as políticas nacionais e a gestão de riscos globais não é aceitável. Mas, no caso de Portugal, esse desalinhamento é ainda mais perplexizante. Somos um dos países europeus mais expostos a choques globais, seja pela nossa posição geográfica e vulnerabilidade climática e sísmica, seja pela elevada dependência de mercados externos (para exportar bens e serviços e para financiar a dívida) ou, ainda, pela elevada dependência alimentar e energética (de gás e petróleo) do exterior. E, ao contrário de outros países, temos uma memória viva do impacto de outros riscos globais anteriores à pandemia - como a crise financeira de 2008-09, a crise das dívidas soberanas na zona euro, a exposição a fenómenos climáticos extremos (como a tempestade Hércules que, em 2014, destruiu o litoral de Portugal continental, os dantescos incêndios florestais de 2017 e a frequência de situações de seca severa e extrema)..Espero que, no que resta da campanha eleitoral, os responsáveis políticos assumam a responsabilidade de discutir os grandes desafios internacionais que, para um país fortemente exposto ao exterior, com uma economia aberta e dispondo de significativos talentos e recursos naturais, tanto geram riscos como oportunidades na competição global..Diretor da Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE; fundador da Plataforma para o Crescimento Sustentável