A dança indiana de Seeta Patel, britânica que o brexit assusta
Bharatanatyam. É difícil pronunciar o nome da dança que o corpo de Seeta Patel, britânica nascida em Londres em 1980, e criada em Bristol, desenha no espaço de uma sala em Xabregas, Lisboa. É um dos mais tradicionais géneros de dança indiana, nação de que ela tem clara ascendência. Mas desengane-se quem antecipar uma história de caril e de uma pequena rapariga que cresce de bindi - pinta encarnada entre os olhos - a dançar por entre a sua família igualmente tradicional.
Ainda que atualmente seja um dos nomes maiores do bharatanatyam, até à universidade nenhum dos amigos de Seeta sabia que ela dançava. "Era como como uma vida dupla, e eu vivia bem com isso. Não pensei muito sobre isso. Talvez achasse que eles não compreenderiam, ou que achariam estranho. É uma coisa estranha de ver, a não ser que o vejas em contexto", explica a bailarina.
Mas nem ela teve propriamente esse contexto. É a primeira da sua família a dançar bharatanatyam. Ela que está em Portugal desde domingo à noite para um workshop intensivo, que começou na segunda-feira e termina amanhã, no centro cultural EKA Palace, em Xabregas. É a sua primeira visita a Portugal. Ensina aquela dança que, de ritmo marcado com os pés que batem no chão, conta histórias com as mãos e espelha no rosto a disposição de cada vez em causa na história. E ainda que se saiba tudo isto, é difícil estar preparado para aquilo de que Seeta é capaz: como se quisesse dar um recado à última fila de uma funda sala, e para tal só tivesse o rosto.
As mãos falam igualmente para essa imaginária última fila. Depois de a ver dançar um pouco, perguntamos-lhe que história contava. Ela explica como estava a dizer: "'Krishna [divindade hindu], por favor, despacha-te. Vem, para podermos estar juntos.' Este gesto é da pena de pavão, que ele usa na cabeça, é uma metáfora, um símbolo, Krishna. Vem e aterra nos lábios, como um beijo."
Chegar às raízes por acaso
Começou a dançar por acaso. Olhou para as atividades de sábado e disse: "Vamos tentar dança... Tinha dez anos e foi em Bristol, e ao lado da mestre Kiran Ratna, que começou. Os gestos das mãos constituem como que um vocabulário daquela dança que só no século XX chegou aos palcos, até lá era interpretada apenas em templos. "Os gestos estão codificados, todos têm um nome. Está tudo escrito como poesia no texto. Recitamo-lo como um poema quando estamos a aprender." Mostra-os em três línguas, que teve de aprender: tamil e telugu, ambas da Índia, e sânscrito.
Chegou a frequentar o curso de Medicina, que a dança interrompeu. Não chegou a tornar-se médica. Em vez disso, atuou em salas como a Royal Opera House ou a Purcell Room, foi à Índia - de onde aos 25 anos não quis voltar, embora o tenha feito -, frequentou a New York Film Academy, realizou a curta-metragem The Art of Defining Me, e ensinou muitos a dançarem o que ela dança.
Quanto à dificuldade em adaptar uma dança tão clássica como é o bharatanatyam à contemporaneidade, Seeta Patel, crítica da abundância de adaptações "simplistas" da cultura sul asiática, explica que "não é fácil", mas que procura, através das histórias, e além delas, tratar a "condição humana".
Quando a encontramos para a entrevista, e para a ver dançar antes do primeiro dia de aulas em Portugal, fica incomodada com a ausência de música enquanto se movimenta pela sala. Vai buscar então o seu iPhone, um pequeno instrumento de madeira, e grava o seu som e o da sua voz a cantar, para se acompanhar a si mesma. Explica depois que o figurino e a maquilhagem habituais a esta dança servem sobretudo para acentuar aquilo de que é feita: a cara, por exemplo, com a maquilhagem, ou a expressividade das mãos, desenhando nelas em tom encarnado.
No rescaldo do referendo em que o Reino Unido onde ela nasceu decidiu abandonar a União Europeia, Seeta abana a cabeça à primeira referência. E ri-se, mas não de alegria. "É louco e ridículo...", diz do brexit. "Para mim o mais preocupante é o nacionalismo, o fascismo da extrema-direita, o racismo que vem dali... Ontem na estação disseram à minha amiga que veio comigo [Sonia, que se encontra à nossa frente, britânica de origem indiana e iraniana: Vai para casa. Agora espero que algo do género me aconteça. Estão a dar espaço à xenofobia de um modo que não acontecia há muito tempo. Isso é assustador. Tenho medo pelo meu sobrinho, por mim, pela minha avó de 95 anos, que pode andar em Barking, a este de Londres, onde votaram Leave [Sair]."
Seeta passará seis semanas na Austrália. Espera que tudo esteja mais calmo no seu regresso. Pois, ainda que viva em Londres, a que chama "uma bolha" no Reino Unido, sente que este referendo "começou qualquer coisa."