Um novo partido nasceu nesta quarta-feira na Turquia prometendo ser a "cura" para quase duas décadas de poder de Recep Tayyip Erdogan. Por detrás da nova formação política está um ex-aliado do presidente turco, o seu ex-ministro da Economia, Ali Babacan, considerado o arquiteto dos sucessos económicos dos primeiros anos de governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco). Que ameaça representa o novo partido para Erdogan?."Os tempos da democracia e do progresso chegaram à Turquia. Nós somos a cura, esta é a hora da cura", disse Babacan, de 52 anos, no lançamento do novo Partido da Democracia e Progresso, que é conhecido pela abreviatura DEVA (de Demokrasi ve Atilim Partisi), que significa "remédio" ou "cura" em turco. "Estamos felizes de apresentar o nosso DEVA, que será a cura para o nosso país", acrescentou..Além de Babacan, a nova formação inclui outros ex-ministros, como o da Justiça Sadullah Eergin ou a do Estado, responsável por temas da mulher e da família, Selma Aliye Kavaf. E estreia-se logo com um deputado, Mustafa Yeneroglu, que tinha deixado o AKP em outubro do ano passado.."A nossa principal prioridade é implementar uma constituição democrática", afirmou Babacan no ato de apresentação do partido, que foi só oficializado na segunda-feira, estabelecendo como prioridade alterar a Constituição de 2017 (que implementou o sistema presidencialista no país). "Vamos transformar o Parlamento num órgão que está no centro do sistema político, que representa como nenhum a vontade do povo e supervisiona com mais eficácia o executivo", acrescentou, prometendo ainda devolver a liberdade de imprensa..Quem é Babacan?.Oriundo de uma família conservadora da Anatólia, Babacan estudou Engenharia Industrial em Ancara e fez um MBA na Universidade de Chicago. No regresso a casa, trabalhou como conselheiro financeiro de empresas turcas antes de assumir em 1994 o negócio da família, que tem interesses no setor dos têxteis, energia, turismo, imobiliário e logística..Membro fundador do AKP em 2001, Babacan entrou no governo logo em 2002 como ministro da Economia, tendo também sido principal negociador para a entrada da Turquia na União Europeia, chefe da diplomacia e vice-primeiro-ministro. Deixou o executivo em 2015, numa altura em que os críticos dizem que Erdogan se tornou mais intolerante com vozes dissonantes. Acabaria por se afastar definitivamente do partido em julho do ano passado, falando em "diferenças profundas nos princípios, valores e ideias" com Erdogan..O AKP surgiu como um partido de centro-direita que se identificava com o Islão como fonte de identidade política e de ação e que chegou ao poder em 2002, prometendo respeitar a constituição secular da Turquia, introduzir reformas económicas e levar o país para a União Europeia..Apesar de ter levado o AKP à vitória em 2002, Erdogan estava proibido de ocupar cargos públicos e foi o cofundador do partido, Abdullah Gül, que se tornou primeiro-ministro. Numa eleição intercalar em 2003, já depois de este levantar a proibição, Erdogan foi eleito deputado e assumiria a chefia do executivo, com Gül a assumir a pasta de chefe da diplomacia e em 2007 a ser eleito presidente da Turquia. Reeleito primeiro-ministro nesse mesmo ano e em 2011, Erdogan seria eleito presidente em 2014 e reeleito já em 2018..Mas Erdogan tem concentrado cada vez mais o poder nas suas mãos, especialmente depois da tentativa falhada de golpe contra si em 2016 e da vitória no referendo de 2017. A consolidação do seu poder coincidiu com um travão no crescimento económico - com choques com os EUA e a ameaça do presidente norte-americano de "destruir" a economia do país levando à desvalorização da lira - e uma política externa cada vez mais interventiva (numa tentativa de recuperar o poder otomano de outrora com iniciativas no Médio Oriente, como a intervenção na Síria). A nível interno, aumentou a perseguição à oposição e implementou restrições à sociedade civil..O descontentamento com Erdogan tem vindo a aumentar na Turquia - uma sondagem feita em fevereiro colocava a sua aprovação no nível mais baixo de sempre, nos 41%, sendo que era de 48% em outubro - e o AKP perdeu o governo das três maiores cidades do país nas eleições locais do ano passado. "Quem ganha Istambul, ganha a Turquia", tinha sido o mote de Erdogan desde que conquistou a cidade em 1994. Erdogan já depende de um partido ultranacionalista para ter maioria parlamentar, mas as presidenciais são só em 2023 e precisará então de uma simples maioria.."A política mantém-se pelo medo. Queremos uma Turquia na qual o nível de bem-estar aumenta e as pessoas podem planear o seu futuro sem medo. Se não o fizermos, piores dias virão para a Turquia", disse Babacan numa entrevista a uma estação de televisão local, a Fox TV, após o anúncio da criação do partido. Na mesma ocasião, Babacan defendeu a necessidade de "reiniciar totalmente" o país..Na entrevista, Babacan disse ainda que não pretende entrar em confronto com o antigo aliado, defendendo um partido focado em temas, não em personalidades. "É verdade que seremos rivais, mas vemos todos os partidos que existem como rivais. Estamos a começar um movimento político que está mesmo no centro", referiu. Analistas dizem que poderá chegar a 10% de eleitores, o mínimo para poder entrar no Parlamento..Este não é o primeiro ex-aliado de Erdogan a virar as costas ao presidente turco. Terá mais sucesso?.Ahmet Davutoglu.Em dezembro de 2019, o ex-chefe da diplomacia (2009 a 2014) e ex-primeiro-ministro (2014 a 2016) de Erdogan Ahmet Davutoglu lançou o Partido do Futuro. "O futuro é a nossa nação, o futuro é a Turquia", disse na cerimónia de lançamento o académico e ex-diplomata de 61 anos, que tinha deixado o AKP que tinha ajudado a fundar em setembro, após ser alvo de um processo disciplinar pelas críticas ao presidente..As consequências de deixar o AKP e formar o novo partido não se fizeram esperar: logo em dezembro o governo assumiu o controlo de uma universidade particular que Davutoglu ajudou a fundar (e que Erdogan inaugurou ao seu lado em 2010) e uma fundação educacional que ele criou foi confiscada pelo governo. Em janeiro, o ex-primeiro-ministro denunciou que todos os membros fundadores do Partido do Futuro estão sob investigação..Tal como o novo DEVA, o Partido do Futuro defende voltar a reescrever a Constituição para voltar para um sistema parlamentar. Na última sondagem, já de março, o partido não vai além dos 1,3% das intenções de voto, com o AKP de Erdogan com 35,4%..Abdullah Gül.O ex-presidente Abdullah Gül foi um dos fundadores do AKP mas tornou-se independente ao assumir a presidência em 2007. Depois de deixar o cargo, manteve-se em silêncio, mas quebrou-o em 2016, quando criticou um decreto-lei que ilibava os civis que lutaram contra a tentativa de golpe de qualquer responsabilidade criminal..Mais tarde criticou também a mudança para o sistema presidencialista e rapidamente foi apontado como um eventual adversário do presidente nas eleições de 2018 (o que não se concretizou)..Gül, de 69 anos, terá dado agora a sua bênção à formação do novo partido de Babacan, alegando-se que pessoas que lhe são próximas estiveram envolvidas no nascimento do DEVA, mas acabaram por não fazer parte da lista de fundadores..Segundo o jornal turco Ahval, houve um desentendimento entre Babacan e Gül durante o fim de semana. O primeiro defendia recrutar membros de partidos da oposição, enquanto o segundo queria focar-se em deserções do AKP. A mesma fonte explica que a divisão entre ambos favorece Erdogan..Outros adversários.O principal rival para Erdogan é contudo o clérigo Fethullah Gülen, que vive nos EUA desde 1999 e que o presidente acusa de estar por detrás da tentativa de golpe de 2016. Curiosamente é outro dos seus antigos aliados, tendo Erdogan usado a rede que Gülen criou (lidera um movimento religioso e social, com uma rede de escolas no mundo, uma organização não governamental e empresas, e forte presença nos media e na justiça) para consolidar o poder..Em 2013, tudo mudou, com as críticas de Gülen à resposta do executivo aos protestos no Parque Gezi, com o presidente a acusar o ex-aliado de agir como "um Estado dentro do Estado" e tentar desestabilizar o governo. Um ano depois, um tribunal turco emitiu um mandado de detenção contra o clérigo, acusando-o de liderar uma organização terrorista. Após a tentativa de golpe, Erdogan efetuou uma purga ao movimento na Turquia, detendo dezenas de milhares de pessoas..A nível político, o principal partido da oposição do AKP é o Partido Republicado do Povo (CHP, na sigla em turco, de centro-esquerda), que foi fundado por Mustafa Kemal Atatürk, o fundador da República da Turquia. Tem atualmente 139 deputados no Parlamento turco, fazendo parte da Aliança Nacional que inclui ainda o Íyi, o Partido da Felicidade e o Partido Democrático..Outro dos rivais do AKP, o Partido do Movimento Nacionalista (ultranacionalista e eurocético), tornou-se o seu aliado depois de apoiar o referendo de 2017, criando a Aliança Popular para as eleições gerais de 2018..Os curdos são outros dos inimigos de Erdogan. O presidente chegou a negociar a paz com o líder do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), Abdullah Öcalan, que as conversações falharam em 2015 e desde então o conflito tem aumentado de violência. Seguiu-se uma onda de repressão aos curdos, em nome da luta contra o terrorismo - o PKK, criado em 1978 para defender os direitos da minoria curda, é considerada uma organização terrorista. A guerra, que desde 1984 já causou mais de 50 mil mortos, ultrapassou fronteiras, com a Turquia a atuar na Síria contra os curdos.