"A costa atlântica portuguesa pode surgir como nova alternativa às rotas migrantes"  

A primeira edição do FLAD Atlantic Security Award, parceria entre o Centro do Atlântico, a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e o Instituto da Defesa Nacional, premiou dois projetos com um valor de 40 mil euros. Os vencedores são hoje anunciados<a href="https://www.youtube.com/watch?v=MFMqQLwabWE" target="_blank"> através do canal de YouTube da Defesa Nacional</a> numa sessão com abertura da presidente da FLAD, Rita Faden, e encerramento a cargo do ministro da Defesa, João Gomes Cravinho. O DN falou com eles por antecipação. Frank Mattheis, da Universidade das Nações Unidas, venceu com o projeto Mecanismos de Segurança Regional Marítima no Atlântico: Um Estudo Comparativo. Susana Ferreira, da Universidade Nebrija, foi distinguida com o projeto A Transformação dos Regimes Fronteiriços no Atlântico. Da Securização a Uma Abordagem Centrada no Sudoeste da Europa e responde aqui às nossas perguntas.
Publicado a
Atualizado a

Portugal tem visto a questão das migrações para a Europa como um problema distante, mas têm aumentado as chegadas de barcos com migrantes. Apesar de não tocar no Mediterrâneo, a ameaça pode vir do Atlântico?
A posição geográfica única de Portugal tem permitido que o nosso país não seja diretamente afetado pelos fluxos migratórios do Mediterrâneo e não sofra a pressão migratória que vivem os restantes países do sul da Europa. Se é certo que o carácter atlântico da costa portuguesa e a intensidade das marés representam um fator repulsor para as rotas migratórias, a interceção de várias embarcações no Algarve com migrantes a bordo desde 2019 reforça a importância geoestratégica de Portugal nas rotas migratórias, pela proximidade com as costas africanas, ao mesmo tempo que suscita receios sobre a possibilidade de Portugal se tornar um destino preferencial para os migrantes irregulares na sequência do reforço dos controlos fronteiriços na costa espanhola. Estes eventos, cada vez menos isolados, parecem evidenciar a emergência de uma nova rota migratória atlântica que alcança a costa portuguesa.

Ao "empurrar " a questão dos migrantes para as suas fronteiras externas, a UE está a colocar a pressão sobre alguns países. Vimos problemas na Polónia, na Lituânia. De forma diferente, Portugal pode acabar por se tornar uma porta de entrada para quem procura alternativas?
Temos vindo a assistir a uma externalização da gestão migratória no contexto da UE, através da qual a União depende de países terceiros que têm um papel cada vez mais importante na gestão da segurança europeia. No entanto, este processo de externalização apresenta vários dilemas relativamente à criminalização dos migrantes, à aplicação das normas de proteção internacional e à salvaguarda da segurança humana dos migrantes. Entendemos que devido à falta de rotas viáveis e ao aumento dos controlos, os migrantes arriscam a vida numa perigosa travessia do Atlântico para chegar à costa portuguesa. Assim, a nova rota atlântica emergente que chega às costas de Portugal resulta de uma forma de contornar os regimes fronteiriços implementados pelos Estados membros europeus, nomeadamente Espanha. Isso desafia a segurança marítima de Portugal, ao mesmo tempo que põe em risco a segurança humana dos migrantes. Neste cenário, a costa atlântica portuguesa pode surgir como uma nova alternativa às rotas existentes, ainda que de momento seja incipiente.

Como é que isso desafia a segurança marítima de um país como Portugal?
Em princípio está por ver a natureza deste novo fenómeno. A abordagem mais comum, embora controversa, às migrações no contexto marítimo tem sido enquadrá-la numa lógica de securitização, uma perspetiva que entende as migrações marítimas como uma ameaça à segurança externa e interna do Estado. Esta perspetiva centra-se no carácter "não controlável" desses movimentos, assim como com as suas possíveis conexões com atividades criminosas, o que se tem traduzido, no contexto europeu e português, na adoção de medidas de carácter urgente de dissuasão para controlar estes fluxos migratórios. Neste sentido falam do "perigo" que representam estes fluxos e da sua possível relação com outros tipos de criminalidade mais ou menos organizada - como o narcotráfico ou o tráfico de armas. No entanto, este entendimento das migrações marítimas (e das migrações em geral) como uma ameaça dificulta a proteção dos refugiados e o humanitarismo no espaço marítimo. Os riscos de viajar através do mar incluem o perigo de afogamento, a exposição a condições meteorológicas extremas, para além das condições inadequadas das embarcações superlotadas. Nesta perigosa travessia do Atlântico, desde as costas africanas, para chegar a um porto seguro no território da UE, vários migrantes perdem a vida, inclusivamente já foram encontrados alguns mortos à deriva do outro lado do Atlântico, perto da costa de Trinidad e Tobago, arrastados pelas correntes.

Como é que se equilibra essa necessidade de garantir a segurança marítima sem descurar a proteção dos direitos humanos destes migrantes?
Os regimes fronteiriços europeus atuais são resultado da visão da migração como uma ameaça para a segurança externa e interna da UE, tendo culminado na implementação de políticas centradas no controlo e na dissuasão. No entanto, a gestão das migrações deve ser feita tendo em consideração o regime de proteção internacional e um conjunto de princípios orientadores para salvaguardar a humanidade dos migrantes e os seus direitos humanos. É necessário uma mudança de paradigma que caminhe para uma compreensão mais abrangente da segurança, incluindo uma gama de questões relacionadas com a salvaguarda da segurança das pessoas, em que o indivíduo ocupe um lugar central.

Espanha tem muito mais experiência a lidar com esta realidade. Até que ponto a cooperação com espanhóis, e com outros países, é importante?
Espanha tem vivido períodos de pressão migratória intensa na sua fronteira sul (de modo particular em Ceuta e Melilla, nas Canárias e no estreito de Gibraltar) desde o início dos anos 2000 e desde então tem vindo a implementar medidas de vigilância e controlo. Portugal tem desenvolvido uma colaboração estreita com o país vizinho, tanto ao nível dos controlos fronteiriços como da gestão migratória. No entanto, as estratégias implementadas caracterizam-se essencialmente pelo seu carácter reativo e restritivo, pelo que é necessária também uma revisão das políticas e dos procedimentos, tanto nacionais como europeus, que permitam gerir as migrações ao mesmo tempo que garantem a segurança humana dos migrantes.

Para terminar, que importância tem para si e para o seu trabalho um prémio como este?
Sinto-me muito honrada com este prémio, que é um reconhecimento do trabalho que tenho desenvolvido como investigadora nos últimos anos. Este prémio permite dar continuidade à minha trajetória de investigação no âmbito da gestão das migrações e da sua relação com a segurança marítima e a segurança humana, centrando-me na inclusão de Portugal na análise da rota de migração atlântica e alargar o espectro de análise em termos de regimes de fronteira na UE para incluir o caso português. Para além disso, dar-me-á a oportunidade de realizar trabalho de campo (tanto em Portugal e Espanha como nos países de origem como Marrocos, Mauritânia ou Senegal), que me permitirá contactar com as realidades locais e aceder a novas fontes e dados primários, para avançar no conhecimento.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt